Agro é uma das causas do problema, mas também é solução
A diretora executiva do Instituto Centro de Vida (ICV) em Mato Grosso, Alice Thuault, participou da Conferência das Nações Unidas sobre as mudanças do clima (COP-27), realizada em novembro deste ano no Egito.
Em entrevista ao MidiaNews ela falou sobre os principais temas abordados no evento internacional, e o lugar ocupado nesse cenário pelo agronegócio, o motor da economia em que Mato Grosso.
“Em alguns lugares do Mundo como no Brasil ele está associado ao desmatamento, à degradação florestal que são fatores na piora das condições climáticas. O agronegócio é visto como uma das causas do problema e também como a solução”, afirmou.
Thuault comentou também sobre a proposta de projeto do governador Mauro Mendes, que confisca terras de quem desmatar ilegalmente no País e do impacto internacional da vitória do presidente eleito Lula (PT).
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Qual foi a tônica da COP-27 em relação ao agronegócio?
Alice Thuault – Acho que nas últimas edições tem se tido um entendimento bem mais forte do papel do agronegócio. Antigamente a gente falava muito do desmatamento, ano passado foi falado muito do metano e do quanto sua emissão está fortemente ligada à cadeia da pecuária. O agronegócio nesse espaço da COP, hoje em dia, é visto como um sistema que precisa mudar. Em alguns lugares do mundo como no Brasil ele está associado ao desmatamento, à degradação florestal que são fatores na piora das condições climáticas. O agronegócio é visto como uma das causas do problema e também como a solução.
Não se oculta nos debates a necessidade que o mundo tem de comer. E embora o agronegócio tenha um peso na cadeia alimentar, alguns dos seus produtos como carne e soja podem ser substituídos. Na cúpula do clima se fala muito em segurança alimentar e nutricional onde a carne tem espaço reduzido em relação ao consumo brasileiro. Pensa-se em circuitos curtos, talvez uma agricultura mais baseada em produção familiar.
MidiaNews – Como viu a proposta do governador Mauro Mendes de se aprovar um projeto que confisca terras de quem desmatar ilegalmente no Brasil?
Alice Thuault – Acho que poderíamos ter mais investimento na rastreabilidade e em sistemas de transparência, por exemplo, a implementação de unidade de conservação. Cercar as ameaças nos territórios me parece mais relevante para um cargo do executivo. Ao invés disso, a gente tem um governador que está fazendo uma recomendação para o congresso federal. Não acho necessariamente uma proposta ruim, não tive muito tempo para ver a possibilidade técnica e jurídica disso. Mas fico me perguntando se essa é a melhor aposta que a gente poderia ter. Por que estamos indo para uma solução tão distante e difícil de ser aplicada imediatamente, enquanto estamos em um momento de emergência climática em que o Mato Grosso tem que entregar resultados já?
O governador tem à disposição várias possibilidades. Ele aumentou a fiscalização, tem hoje um centro de monitoramento dentro da Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema), que está realmente com alta performance. Mas a parte de cobrança de multas ainda está aquém.
MidiaNews – Tem se falado que a aproximação de um novo governo melhora as perspectivas para o País, bastante criticado nos últimos anos. A senhora voltou com essa impressão?
Alice Thuault – Claramente a gente sentiu isso. Foi falado em vários momentos de que a volta de um governo atuante na pauta climática e ambiental foi vista de forma muito positiva. Isso porque o Brasil é visto, internacionalmente, como um País que tem um papel, e isso é até muito bonito de ser visto. Ele tem essa habilidade de negociação, é um País que representa muito a paz, tanto é que nas reuniões das Nações Unidas o primeiro discurso é o do Brasil. Mas o próprio presidente eleito pediu cautela, uma vez que o Brasil está em uma situação econômica muito complicada, uma situação ambiental trágica, e uma situação de direitos humanos e de fome trágica também. Vale lembrar que esse protagonismo é fundamental, mas que ele não vai resolver tudo.
MidiaNews – O que há de consenso sobre os principais impactos do agro no aquecimento global?
Alice Thuault – Se você pegar o agro brasileiro e mato-grossense, especificamente, que tem um perfil bem característico, o agro de Mato Grosso tem uma ligação muito clara como o desmatamento. Não digo que todo produtor desmata, mas hoje sabemos que parte do desmatamento está dentro das cadeias de produção do agronegócio, baseado nos dados do Instituto Centro de Vida (ICV), que mostram que 50% dos desmatamentos estão dentro do Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Quando o produtor implementa o código florestar, que é obrigatório, ele faz um cadastro. Com isso o governo tem os limites da propriedade e é possível cruzar esses dados com imagens de satélite para chegar a esse número. Quando falamos em desmatamento em Mato Grosso, falamos de uma área de mais de 2 mil quilômetros quadrados, que vai crescendo ano após ano e mostra que apesar dos grandes esforços de fiscalização e de comando e controle, isso não tem surtido efeito e temos com isso o principal impacto.
Mas têm outras, o gado emite metano que a gente sabe hoje que é um gás, dentro dos gazes do efeito estufa, que a emissão precisa ser reduzida, e quanto mais rápido a gente reduzir, melhores as possibilidades de mudanças climáticas.
MidiaNews – Uma das vantagens de MT é a previsibilidade no regime de chuvas. Isso pode acabar?
Alice Thuault – Tem um estudo muito interessante da Embrapa sobre isso. Mato Grosso está no centro dos danos e emissões dos gazes do efeito estufa, mas também tem uma certa vanguarda e inovação na parte de produção de dados e transparência. Esse trabalho fala sobre os custos das mudanças climáticas para o agronegócio, em quanto vai aumentar a temperatura, o quanto vão reduzir as chuvas, as culturas e esse calendário que costuma ser bastante certinho. O que ele mostra é que vai impactar bastante e que provavelmente a gente vai ter um aumento de 2°C a 3°C na temperatura em todos os municípios, com variações dependendo da região do Estado. Isso criará zonas de perigo e vulnerabilidade climática, muito maior que outros. Ainda está sobre estudo, mas em MT as pessoas já estão começando a ver o quanto isso já é uma realidade.
A questão da chuva e da disponibilidade de água foi bastante presente na COP. Acho que vale acompanhar de perto, porque a gente já está vendo o Pantanal não tendo a mesma recuperação de água estacional que a gente tinha antes. Estamos em uma década chave, a década da emergência climática, e se não tiver uma mudança nos padrões das emissões nos próximos anos, até 2030, a gente vai ter esse aumento na temperatura. O objetivo de manter as mudanças climáticas em 1,5°C, nessa altura do campeonato, está impossível.
MidiaNews – Quando deveremos começar a sentir esses efeitos de forma mais profunda?
Alice Thuault – Já estamos sentindo. Já estamos em um mundo mais quente. Tivemos grandes incêndios em 2019 , e em 2020 o Pantanal queimou. A cada ano que passa os focos de calor e as superfícies queimadas são maiores do que as do ano anterior. A maioria deles são práticas de limpeza de pastagem que estão saindo do controle, claro que pode ter gente maluca que vai colocar fogo, mas não dá para pensar que as pessoas estão fazendo isso para criar esses desastres. Têm estudos que mostram que o aumento de queimadas, tão fortes em Mato Grosso, tem a ver com mudanças climáticas, que a redução da disponibilidade de água também, além dos impactos na saúde e questões respiratórias.
MidiaNews – Se nada for feito para interromper o avanço do aquecimento global, quando o agro passará a sentir com mais força seus impactos?
Alice Thuault – Também já está acontecendo. O IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), coletivo internacional de cientistas que fala sobre mudanças climáticas, já têm avaliações de quanto os países estão perdendo, avaliando em perda e produtividade, aumento dos desastres ambientais etc. Em janeiro teremos novas enchentes e isso tem custos. Dentro do estudo da Embrapa tem os custos da adaptação e se avalia que no Brasil, a cada tonelada de carbono emitido, perde cerca de 24 dólares. Sabendo que a gente emite bilhões de toneladas, é um custo grande para a economia.
MidiaNews – Muito se falou antes da COP-27 sobre boicote às exportações por causa do desmatamento no Cerrado. O que ficou definido em relação a este assunto?
Alice Thuault – A COP não é um espaço de negociações comerciais e quando falamos disso, falamos de negociações comerciais e acordos bilaterais ou acordo coletivos dentro das cadeias. Saiu uma carta de grandes players do mercado de commodities que foi avaliada pelas organizações da sociedade civil como muito fracas, porque a meta de redução do desmatamento estava muito lá na frente.
Hoje sabemos como tirar o desmatamento das cadeias e quais passos precisam ser dados. Isso tem a ver com transparência dos dados, como por exemplo, a guia do transporte dos animais dentro da cadeia de pecuária, a transparência na parte da soja com relação às compras, modelos de rastreabilidade, etc. Mas isso tem um custo e pode gerar conflitos com os fornecedores, e ainda não trazer uma solução. O certo seria ter exclusão de lista, mas apoio para os produtores se regularizarem e pararem de desmatar. Essas soluções ainda estão acontecendo em ritmo bem lento.
Existem movimentações que dão sinais de que a produção de carne, soja e outras atreladas a essas vão precisar ser adequadas. Não existe uma resposta muito clara, nem do mercado nem do governo de Mato Grosso em relação a isso. O governo de MT tem programas de regularização que são programas voluntários e que precisariam entrar em um compasso muito mais obrigatório. Está muito claro que a produção mato-grossense precisa ser adequada e é melhor se adequar agora que têm recursos de financiamento climáticos para fazer isso acontecer.