Crime está migrando para o virtual e não há viatura na internet
O delegado Mário Dermeval, que deixa a chefia da Polícia Civil no fim deste mês após quatro anos, diz que sua gestão representou um salto na corporação.
Entre as melhorias, diz, está a modernização e investimento em sistemas de inteligência e a redução de prazo para a conclusão de inquérito. Antes, o tempo médio era de mais de 100 dias e hoje não ultrapassa os 50.
Dermeval apontou que ainda há muito a se investir, em especial no combate aos crimes cibernéticos. Segundo ele, essa modalidade aumentou 500% nos últimos dois anos no Estado e a aniquilação das práticas requer investimento.
“Não há ostensividade e viatura caracterizada alguma que vai entrar dentro de um computador para fazer a diligência e prender o criminoso virtual. […] O único remédio para se impedir a expansão dessas organizações – seja no quesito tecnológico e nas ações de crimes “físicos” – é a presença de uma Polícia Civil fortíssima”, disse o delegado ao MidiaNews.
Não há ostensividade e viatura caracterizada alguma que vai entrar dentro de um computador
“Infelizmente, sem produção de materialidade não produziremos prisões duradoras, e são elas o elemento chave para se diminuir esse fenômeno. Enquanto tivermos tratando a segurança pública com prisões de escada rolante, a malversação do dinheiro público vai estar escancarada”, concluiu.
Ao MidiaNews, Dermeval fez uma avaliação da gestão, falou de casos sensíveis à Polícia Civil e combate a facções criminosas. Ele também comentou sobre a escolha de Flávio Dino para ministro da Justiça e Segurança Pública.
Confira entrevista na íntegra:
Divulgação
A delegada Daniela Silveira Maidel que sucederá Mario Dermeval
MidiaNews – Apesar dos investimentos em Segurança, vimos nos últimos tempos um avanço das facções, a ponto de lavarem terror para cidades prósperas, como Sorriso, onde houve uma onda de assassinatos. Por que as autoridades não conseguem deter esse avanço?
Mario Dermeval – A sociedade não entendeu que a Polícia Civil é essencial para o combate das organizações criminosas. Prisão de escada rolante não resolve mais o problema. O investimento maçante em ostensividade não resolve o problema do crime organizado.
Não nos interessa mais a prisão de um caminhoneiro com uma tonelada de cocaína. O que nos interessa é a prisão de três quilos de droga, com a prova suficiente para identificarmos e desmantelamos uma quadrilha inteira, inclusive chegando ao patrimônio dessa quadrilha.
Um investimento forte e sério em Polícia Judiciária, que vai produzir materialidade, identificar as organizações, o patrimônio dessas organizações, que entrará nos sistemas tecnológicos e vai conseguir angariar provas de maneira qualificada para trazer aos autos as informações de maneira rígida, para se entregar ao Judiciário a possibilidade de uma condenação.
Tudo isso depende de uma Polícia Civil forte. Vemos vários estados brasileiros com a Polícia Civil em frangalhos. E vemos também um estímulo a usar a força para combater o crime, que é bem-vinda, mas por si só não se resolve e sim afugenta o problema.
Porque não adianta você prender o cara na segunda e ele ser solto na sexta. É para prender para o cara ficar preso 30 anos. E para isso acontecer tem que ter provas. E para ter prova tem que ter polícia civil.
MidiaNews – Facções criminosas fazem trabalho social nas periferias, ajudando famílias de detentos com cestas básicas e outros serviços. Não é um risco para o País que criminosos estejam ocupando esse espaço que deveria ser do Estado?
Mario Dermeval – É um fenômeno da ausência do Estado. E essa ausência se dá com a polícia civil mal estruturada. Não basta por si só que ostensividade esteja na rua, trazendo a sensação de segurança ao cidadão.
Nós necessitamos de uma polícia civil qualificada, efetivamente bem estruturada, para que a gente aniquile essas práticas de organizações.
Aqui em Mato Grosso, só temos a agradecer ao Governo, porque nos últimos anos foi possível uma grande evolução, e nesse caminho temos muito a progredir. E, talvez, Mato Grosso seja um dos estados brasileiros que menos está afetado pelas organizações.
MidiaNews – Podemos falar que os crimes encabeçados pelas facções são os que dão “mais trabalho” à segurança pública?
Mario Dermeval – O crime está migrando. Os crimes virtuais explodiram de 2019 a 2021 em 500%. Não há ostensividade e viatura caracterizada alguma que vai entrar dentro de um computador para fazer a diligência e prender o criminoso virtual.
Enquanto tivermos tratando a segurança pública com prisões de escada rolante, a malversação do dinheiro público vai estar escancarada
As organizações vinculadas a prática de estelionato estão cada vez mais migrando ao crime tecnológico e cada vez menos agindo de maneira a se utilizar da força. E volto a dizer, o único remédio para se impedir a expansão dessas organizações – seja no quesito tecnológico e nas ações de crimes “físicos” – é a presença de uma polícia civil fortíssima.
Infelizmente, sem produção de materialidade não produziremos prisões duradoras, e são elas o elemento chave para se diminuir esse fenômeno. Enquanto tivermos tratando a segurança pública com prisões de escada rolante, a malversação do dinheiro público vai estar escancarada. Ou seja, o bom investimento em segurança pública envolve também investimento em investigação.
A Polícia Civil tem que trabalhar de maneira oculta, discretas. E as operações da Polícia Civil, normalmente, são o único evento em que a Policia Civil aparece. Fora isso, ninguém a vê. E a boa polícia civil, quanto mais oculta for, melhor.
MidiaNews – O senhor citou os crimes cibernéticos. Esse tem sido um desafio para as policias civis?
Mario Dermeval – Nós criamos a Delegacia de Repressão a Crimes Informáticos (DRCI), que hoje é referência nacional. Já estamos trabalhando junto a Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e ao Banco Central para criarmos mecanismo administrativo de bloqueio de recursos, em caso de golpes envolvendo PIX.
São diversos desafios dentro dessa esfera de preservação de dados, quando há crime virtual ou quando há um crime contra a honra, quando se utilizam de redes sociais ou WhatsApp. Tudo isso tem sido um desafio e todos os dias temos aprendido mais.
Acontece que, a Polícia Civil de Mato Grosso tem buscado uma sincronia para que haja uma integração das polícias civis brasileiras, para que esses dados sejam transacionados entre elas e que nós fechemos, principalmente com os bancos, uma modalidade administrativa de bloqueio de recurso.
MidiaNews – A nossa legislação peca nesse sentido?
Mario Dermeval – Peca. O PIX foi colocado em prática no Brasil, os golpes se proliferaram e até hoje não existe uma legislação para bloqueio desses recursos.
MidiaNews – Recentemente, houve o caso de um delegado que invadiu uma casa, sem mandado, ameaçou a dona e uma criança. Não considera que esse tipo de atitude macula a imagem da Polícia Civil?
Mario Dermeval – Não. Eu acho que todas as instituições estão suscetíveis a episódios como esse. O concurso da Polícia Civil foi feito por outro instituto. E episódios lamentáveis como o desse delegado, já aconteceram em outras instituições. Isso não agrada a Polícia Civil e isso nos chateou bastante e as providências foram adotadas.
A Corregedoria afastou esse profissional e os fatos que ele teria cometido, todos estão sendo apurados rigorosamente por parte da nossa corregedoria. Nós não podemos emitir juízo ao fato de o delegado estar certo ou errado. Mas esperamos que a verdade seja materializada e o delegado responsabilizado caso isso se confirme.
MidiaNews – Ainda que se emita um juízo sobre possíveis crimes, mas a maneira em que foi feita aquela abordagem não te choca?
É chocante. Lamentável. A Polícia Civil está tomando as providências. Infelizmente, não conseguimos controlar as atitudes dos policias e delegados.
Mario Dermeval – É chocante. Lamentável. A Polícia Civil está tomando as providências. Infelizmente, não conseguimos controlar as atitudes dos policias e delegados. Não concordamos com o tipo de ação que foi realizada, ainda mais com distintivo e com policias acompanhando o delegado.
MidiaNews – O distintivo de delegado dá grandes poderes a uma pessoa, que, às vezes, a usam de maneira equivocada. Não acha que deveria haver uma preparação psicológica para novos delegados a fim de entender o poder que têm nas mãos e saber como usá-lo?
Mario Dermeval – A matriz curricular da academia de polícia mudou bastante e tem buscado aprimorar mais no sentido de formar uma conduta do policial em formação. Acontece que existem exames psiquiátricos e psicológicos feitos no período de concurso como fase e em todos esses exames os que hoje trabalham foram aprovados e é o caso desse delegado.
Fomos pegos de surpresa e não tem como sabermos mais que os próprios psicólogos que o aprovaram.
MidiaNews – Neste fim de ano, a Corregedoria deflagrou uma operação contra policiais acusados de desviar drogas apreendidas na fronteira para revendê-las. Como chefe da PJC, que tipo de sentimento teve quando soube destes crimes gravíssimos?
Mario Dermeval – Fomos surpreendidos. Lá no início, quando se constatou os primeiros desvios de entorpecentes e imediatamente acionamos a corregedoria, fomos a Cáceres e ali fizemos uma aplicação pormenorizada de todas as embalagens e chegamos a uma quantidade bem maior do que se imaginava no início.
A Polícia Civil iniciou uma investigação grande, complexa uma das mais avançadas do país. Eu creio que tenha sido o maior trabalho feito pela PJC em 2022.
A Polícia Civil só tem a lamentar. Tivemos coragem de cortar na própria carne. Tomou as providências. E na continuação das investigações, esperamos continuar identificando mais pessoas que possam ter envolvimento direto ou indireto com essa ação criminosa. Esperamos também que esse tipo de problema não aconteça mais pelo exemplo que se deu com a severa aplicação da lei contra esses policias que desviaram o entorpecente.
MidiaNews – Há a informação dada por um advogado dos policiais de que houve vazamento da operação em Cáceres. É algo muito grave. A Corregedoria já tomou providência a esse respeito?
Mario Dermeval – O vazamento não ocorreu na Polícia Civil. As representações foram apresentadas ao judiciário e quando tivemos acesso aos mandados de prisão, enquanto se organizava a operação. Infelizmente, fomos surpreendidos com a informação de que haveria esse vazamento.
Não posso citar mais detalhes, mas comunicamos o Poder Judiciário para que as providências sejam adotadas. O importante é que todos os alvos foram presos e muitas informações relevantes foram obtidas.
Os trabalhos dessa operação devem terminar em no mínimo um ano. Ainda tem muito chão pela frente. E que nós, ao final, consigamos desmantelar uma organização gigante a qual existem policiais civil envolvidos infelizmente.
MidiaNews – Como avalia o nome do ex-governador Flavio Dino como novo ministro da Justiça?
Mario Dermeval – O senador Flavio Dino é um político experiente. Ele foi governador de Estado e militou como juiz. E a gente enxerga com muita esperança de que na gestão da segurança pública ele faça um bom trabalho.
Estivemos por lá [em Brasília] por três dias na semana passada. Tivemos oportunidade de reunir com o senador e com toda a equipe dele. E temos esperança de, nesse cenário de investigação policial, da policia judiciária em específico, sejamos plenamente ouvidos.
MidiaNews – A tendência é que Lula separe o Ministério da Justiça da Segurança Pública. Acha que isso trará benefícios?
Um ministério específico de Segurança Pública seria o ideal para que as forças de segurança fossem tratadas com prioridade por pessoas que entendam de segurança pública
Mario Dermeval – Não dá para saber. Nós tivemos, agora, um Ministério da Justiça e Segurança Pública no governo Bolsonaro e fomos muito bem atendidos. Eu acredito que o ministério permaneça fundido pelo menos nesses primeiros seis meses para que o novo governo federal se situe da realidade da segurança pública nacional e dali em diante comece a tomar atitudes mais específicas com a criação de secretária e talvez chegando até o desmembramento.
Sinceramente, na minha opinião, um ministério específico de Segurança Pública seria o ideal para que as forças de segurança fossem tratadas com prioridade por pessoas que entendam de segurança pública. E que dentro desses ministérios, as forças de segurança tenham secretarias especificas tratando de suas áreas.
MidiaNews – O senhor deixa o cargo de diretor-geral após quatro anos. Como avalia sua passagem pelo comando de uma corporação tão importante?
Mário Dermeval – Eu avalio a passagem da gestão – que é constituída por oito diretores, por um grupo de policiais técnicos e de colaboradores – como a de maior evolução na história da Polícia Civil.
Nesses quatro anos, conseguimos evoluir mais que qualquer polícia civil brasileira. E nos últimos dois anos, chegamos próximos de sermos a melhor polícia civil do Brasil.
Não por conta da falta de efetivo, não por conta das dificuldades que o Estado apresenta por estar em desenvolvimento e ser muito grande, mas em virtude da filosofia que conseguiu se implantar na Instituição, com o estabelecimento da tecnologia como carro-chefe da gestão investigativa, processual e administrativa.
MidiaNews – Em uma entrevista que nos concedeu em 2019, o senhor afirmou que uma das metas como diretor-geral da Polícia Civil era fechar o cerco contra os sonegadores. Conseguiu cumprir essa meta?
Mário Dermeval – Nós readequamos toda forma de ação da Delegacia Fazendária, cindindo ela e criando a Delegacia de Combate à Corrupção. Com essa cisão foi possível se estabelecer um novo modelo de ação de combate a crimes fiscais no Estado, com a nova Defaz, que hoje se encontra trabalhando aliada ao Ministério Público, dentro do Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos (Cira).
Eles conseguem de maneira pré-processual, ou seja, de maneira a não chegar a persecução penal, conseguem trazer pessoas que por algum motivo deixaram de pagar impostos ou cometeram crimes de sonegação.
MidiaNews – Isso também resulta em celeridade ao processo de restituição, não é?
Mário Dermeval – Dá muita celeridade. Um processo se arrasta de 10 a 20 anos. Agora, o Estado tem acesso aos recursos para restituir os cofres públicos rapidamente. Além de permitir que o Estado se desenvolva sem que empresários e cidadãos que produzem fiquem negativados junto aos registros do Estado.
Isso permite que as pessoas consigam se livrar dos problemas fiscais, consigam progredir com as suas empresas, com suas vidas profissionais e financeiras.
MidiaNews – Como a futura diretora-geral da Polícia Civil, Daniela Silveira Maidel, vai encontrar a corporação a partir do ano que vem?
Mario Dermeval – A doutora Daniela Maidel vem da gestão. Ela foi diretora sistêmica por quatro anos, tem ampla experiência na área infraestrutural da Polícia Civil. Não só no que tange a viaturas e prédios, mas na estruturação tecnológica da polícia. Ela pode vivenciar com muita proximidade todos os outros setores da polícia.
E agora ela entra em uma nova era, agregando o conhecimento que já tem, com o que ela adquiriu com os demais delegados para tratar de investigações, operações, de contratação de mais efetivo, de tráfego junto aos Poderes de Mato Grosso e nacionais e eu acredito que ela fará uma gestão ainda melhor.
MidiaNews – O fato de uma mulher chefiar uma instituição tão importante, faz diferença na imagem e da condução da PJC?
Mario Dermeval – Sem dúvida. A PJC nunca teve uma mulher no comando. Nunca deixamos de atender as causas femininas, as causas sensíveis que envolvem também as crianças, adolescente e idosos. Mas esperamos, sinceramente, que essas causas sejam melhores assistidas agora com a presença dela, que tem uma competência.
MidiaNews – Recentemente foi realizado um concurso para a Polícia Civil. Com as nomeações, o déficit de efetivo estará solucionado?
Mario Dermeval – Nós temos uma lacuna de 2 mil policiais a ser suprida. Hoje, temos 270 delegados, 645 escrivães, e 1976 investigadores. No total, temos 2894 policiais civis. Quando entrei na gestão, tínhamos 3,3 mil. Despencou o número por conta das aposentadorias.
Precisamos de nomeações urgentes ou precisamos de um novo modelo de gestão. Podemos terceirizar o atendimento mais simples, que é aquele feito em balcão, a escrituração de boletim de ocorrência, vigilância patrimonial de algumas unidades. Isso pode perfeitamente ser feita por terceirizados.
Estamos estudando e tentando propor a contratação de mais pessoal, mas isso envolve aumento de gastos. E quando se fala em aumento de despesa, temos uma série de restrições legais e orçamentárias. Então, estamos tentando através do convencimento e de estudos que é necessário que o problema do efetivo seja solucionado.
Mas todas as polícias civis do Brasil estão passando por esse choque de, obrigatoriamente, terem que se converter a terceirização de parte do seu atendimento, porque o servidor público está custando caro e acaba se esbarrando no impacto financeiro que essas contratações trazem.
MidiaNews – Então, é algo urgente?
Mario Dermeval – Mato Grosso cresce e a polícia tem que crescer junto. Não adianta Sorriso ter a mesma quantidade que se tinha há 10 anos atrás. Lá, iremos entregar em dois meses uma delegacia nova e a delegacia continua com efetivo baixíssimo, que ‘malemá’ vamos conseguir ocupar as salas. É uma cidade que cresce, a Capital do agronegócio no País.
É muito complicado. Estamos buscando junto ao Governo sensibilidade para que possamos entregar a sociedade uma equipe de polícia civil forte. Até porque a Polícia Civil não lida com policiamento preventivo. O pré e o pós operação na atuação da polícia civil são complexos e envolvem uma qualidade investigativa gigante que deve constar em autos de investigação policial e em representações que perante o Judiciário acabam sendo concedidas por meio das medidas cautelares.
E posterior as operação. A sociedade e a imprensa só enxerga a operação. Mas o pré o pós operação ninguém enxerga. O pós operação talvez seja a pior fase que a Polícia Civil enfrenta, porque ela junta os cacos e quanto mais bem sucedida for uma operação, mais provas tem que ser adensada aos autos para que efetivamente a gente entregue ao juiz materialidade e os promotor condições para o oferecimento de denúncia.