Arcebispo: “Se alguém passa fome, a culpa é de quem acumula”

O arcebispo de Cuiabá Dom Mário Antônio da Silva tem posições claras em relação a temas políticos e sociais. Crítico feroz da má distribuição de renda, o religioso defende que as pessoas precisam ser mais solidárias para vencer o flagelo da fome.

 

“Se alguém passa fome no Mundo de hoje, a culpa não é da natureza e, às vezes, nem de quem passa fome, mas é de quem acumula. É louvável o nosso Estado se destacar pela produção de alimentos”, diz, ao mesmo tempo ponderando. “Ao lado dos celeiros cheios, é preciso encher as mesas e os pratos de quem não tem o que comer”.

 

Na entrevista de fim de ano que deu ao MidiaNews, o arcebispo ainda falou da fé como remédio para as desavenças familiares, fez uma avaliação sobre o papel das redes sociais e alertou para o aumento dos casos de depressão.

 

As relações estão tóxicas. Isso vem se acumulando na vida das pessoas (…) a ponto de levá-las ao desânimo e frustração, ao isolamento, à depressão e, infelizmente, em muitos casos, até a ponto de cometer o suicídio”. 

 

Leia abaixo os principais trechos da entrevista: 

  

MidiaNews – Vivemos um ano de muitas brigas, com famílias sendo divididas por causa de política. Qual atitude as pessoas devem tomar para ter de novo um lar mais harmônico?

 

Se diante das opções políticas foi impossível manter a harmonia e aconteceram discussões e brigas, o importante é não permanecer nelas

Dom Mário Antônio da Silva – Se diante das opções políticas foi impossível manter a harmonia e aconteceram discussões e brigas, o importante é não permanecer nelas. É necessária uma atitude de reconsideração para o ideal da harmonia. Não precisa pensar igual, mas é preciso saber conviver com quem pensa diferente. Nessas questões políticas temos as nossas divergências e por isso [existem] as eleições. É importante não permanecer em um terceiro turno. Nele não há vencedores, só perdedores. A briga, a resistência em decorrência dos resultados, a não aceitação, por mais que eles sejam questionáveis, expressam, em um País como o nosso, elementos da democracia e que quando aceitos podem favorecer para uma construção nacional. Caso contrário, só vai somar para interesses de alguns grupos que têm o direito de questionar, de se manifestar, mas se não ajudar a construção do bem comum para a nação, não vale a pena.

 

MidiaNews – Como a fé em Deus pode amenizar as desavenças dentro da família?

 

Dom Mário Antônio da Silva – A fé é um elemento que nos ajuda a superar muitas questões. Não é mágica, não é automática, mas precisa ser buscada. A fé verdadeira nos leva a ter boas obras e elas são registradas por gestos e atitudes correspondentes à vontade de Deus e ao respeito às outras pessoas. Por isso uma atitude de fé nos ajuda a purificar a vida de cada um de nós no aspecto religioso, político, familiar e social. É preciso ter fé, e a fé legítima não é apenas conhecimento de normas ou regras, conhecimento a respeito de Jesus ou de Deus. A fé verdadeira é a adesão, o compromisso, a aliança… E se não tivermos essa adesão podemos cair em uma crendice de algo passageiro e à luz de interesses e não de uma doação, de uma entrega como a fé legítima e verdadeira nos interpela.

 

MidiaNews – Nos últimos anos as doenças psiquiátricas avançaram no mundo, sobretudo depois da pandemia, resultando no aumento dos casos de suicídio. Quais são, na opinião do senhor, as causas de tantos suicídios?

A fé é um elemento que nos ajuda a superar muitas questões. Não é mágica, não é automática, mas precisa ser buscada

 

Dom Mário Antônio da Silva – A humanidade está doente, vivemos num ambiente muito doentio, não só na dimensão psiquiátrica, mas na emocional e na esfera das relações. As relações estão tóxicas. Isso vem se acumulando na vida das pessoas, no ambiente de trabalho e até no religioso fazendo com que seja danoso a ponto de levá-las ao desânimo e frustração, ao isolamento, à depressão e, infelizmente, em muitos casos, até a ponto de cometer o suicídio. É triste e revela a nossa incapacidade de ajudar as pessoas a administrarem seus problemas e angústias. É preciso que a sociedade como um todo, e nós em um aspecto religioso, pensemos melhor as nossas relações e atitudes para que sejam construções humanizadoras e resgatem nas pessoas a confiança e o ânimo para superar os seus problemas e administrar suas frustrações. Não só dos jovens, mas das pessoas em qualquer fase da vida.

 

A pandemia colocou em evidência problemáticas na vida da humanidade. Questões econômicas, religiosas, familiares, políticas e até mesmo comerciais. A pandemia nos questionou a pensar qual é a nossa capacidade de reinventar, de recomeçar e de construir tempos melhores em situações desfavoráveis. Foi um grande teste para a humanidade e percebemos que onde se exercitou a fé e a solidariedade a superação foi muito real e concreta, trouxe benefícios para as pessoas. Já onde faltou solidariedade, fé e honestidade, pode até ter tido ganhos e lucros, mas não houve promoção da vida.

 

MidiaNews – Como a Igreja pode atuar para impedir que as pessoas doentes tomem essa atitude drástica?

 

Dom Mário Antônio da Silva – Mais do que impedir, temos a consciência de que devemos trabalhar em um âmbito de prevenção, de alerta, de formação da consciência para que as pessoas, diante de dificuldades, possam não apenas se apegar a Deus, mas sentir que Deus está com elas, e possam em comunhão e espírito de comunidade e até de união familiar superar algo passo a passo, de maneira gradativa. Não só pela dimensão religiosa, às vezes até pela dimensão de um tratamento, em casos que precisem do auxílio da medicina, de profissionais na área da saúde mental. Creio que é uma rede de elementos que se entrelaçam para o bem das pessoas.

A humanidade está doente, vivemos num ambiente muito doentio

 

MidiaNews – Vivemos a era das redes sociais, da exibição e da vaidade. Qual é a recomendação do senhor em relação ao uso das redes sociais?

 

Dom Mário Antônio da Silva – O uso das redes sociais traz benefícios quando usadas à luz da verdade, da honestidade e do respeito. Hoje não é apenas um instrumento, é uma cultura, não só para os jovens, mas para todos aqueles que fazem uso da tecnologia, e como elemento que nos oferece uma estratégia para a superação de todas as coisas. Então, o que é prudente e sensato é usar de maneira controlada, disciplinada com o ideal de sempre fazer o bem, promovendo paz, justiça, promovendo uma organização que possibilite o bem comum, não apenas o bem pessoal. Penso que as redes sociais com indiferença, individualismo e orgulho são uma arma danosa. Mas com espírito de altruísmo, de solidariedade, de praticar a justiça e semear a verdade para o bem comum, é algo fenomenal que devemos apostar e buscar e, até mesmo, propagar. As redes sociais são um instrumento de facilitação, de proximidade. Agora, precisa ter reta intenção.

 

MidiaNews – Vivemos no Estado que é o maior produtor de alimentos do Mundo, mas onde ainda há pessoas passando fome. De quem é a culpa por essa situação?

 

Dom Mário Antônio da Silva – Se alguém passa fome no Mundo de hoje a culpa não é da natureza e, às vezes, nem de quem passa fome, mas é de quem acumula. É louvável o nosso Estado se destacar pela produção de alimentos. Nosso País tem grande potencial agrícola, mas ao lado dessa produção de alimentos, é preciso pensar em fomentar mais a agricultura familiar. Ao lado dos celeiros cheios, é preciso encher as mesas e os pratos de quem não tem o que comer. Ao lado da grande produção, é necessária a solidariedade, porque produzir e acumular vai gerar riquezas para o Estado ou uma instituição, mas não vai gerar saúde e segurança alimentar para a população, sobretudo para os mais pobres.

 

O uso das redes sociais traz benefícios quando usadas à luz da verdade

É inquietante hoje, no nosso Brasil, saber que 60 milhões de pessoas vivem algum tipo de insegurança alimentar e quase 18 milhões não sei se almoçaram hoje ou se vão jantar. É preocupante! Inclusive a nossa Igreja, através da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), está promovendo para o próximo ano no tempo da quaresma campanha da fraternidade do combate à fome. É impossível conviver com situações tão díspares no nosso Brasil: celeiros cheios, mesas com abundância e outros de estômago vazio, pessoas morrendo de fome nos dias de hoje. Acompanhei algumas atividades das nossas pastorais em serviço com famílias pobres, com famílias que recebem os benefícios do governo federal, mas que não têm no dia a dia uma alimentação digna e de acordo com a Organização Mundial da Saúde. Não vi situações extremas aqui no Estado, mas ouvi relatos muito preocupantes.

 

MidiaNews – O Brasil terá a partir desse dia 1º de janeiro um governo progressista, o que fortalece as discussões sobre descriminalização do aborto e das drogas. Como a Igreja Católica vai se posicionar quando estes temas vierem à tona por meio de propostas legislativas?

 

Dom Mário Antônio da Silva – A Igreja Católica sempre tem se posicionado a favor da vida. Para nós o direito à vida é sagrado desde a concepção, momento inicial da existência de uma nova pessoa, até a sua morte e morte natural. Tanto na questão do aborto, na questão da violência, na questão da eutanásia, o posicionamento da Igreja Católica é de promover a vida na sua dignidade, uma vez que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Sempre que apareceram essas questões no governo, até os dias de hoje, a manifestação da Igreja Católica foi muito clara, nítida. Sem dúvidas continuará sendo nessa direção, independente do sistema de governo que se adote, que se estabeleça, a nossa prioridade é a vida humana.

 

Existe o conceito de ortotanásia na bioética católica para os casos extremos, onde avaliadas as condições de um paciente terminal ele recebe os cuidados chamados paliativos, para que a morte aconteça em um quadro de dignidade humana.

 

Se alguém passa fome no Mundo de hoje a culpa não é da natureza e, às vezes, nem de quem passa fome

MidiaNews – Qual a opinião pessoal do senhor sobre a legislação brasileira a respeito do aborto?

 

Dom Mário Antônio da Silva – Eu sou defensor da vida do começo ao fim. E se queremos defender a vida e ser contra o aborto, devemos cuidar das gestantes. Não basta discurso, é preciso cuidar das mulheres com os seus nascituros e, sobretudo, das mais pobres. É a melhor maneira de propagar ao Mundo que somos defensores da vida. No aspecto do Brasil há uma questão legal; o Código Penal livra de penas a prática do aborto em alguns casos, mas não diz que é moral.

 

Eu pauto pela moralidade, não abro mão da moralidade dos atos do ser humano. Continuo favorável à vida mesmo nesses casos de despenalização. É possível encontrar um caminho digno e justo, respeitoso para com a gestante e para com a criança, para que não haja danos maiores do que já

aconteceram e nem violência maior com os seres indefesos. Onde realmente a gestante corre risco de vida há a questão do duplo efeito, então é uma prática tolerável, não desejável, mas só onde é real o risco de vida da gestante.

 

MidiaNews – Nos últimos tempos, vimos notícias sobre problemas estruturais em igrejas como a de São Benedito e do Bondespacho. O que tem sido feito para reparar esses problemas estruturais?

 

Dom Mário Antônio da Silva – De fato não são somente elas que estão em situações precárias onde é necessário investimento. Parte da responsabilidade é da nossa Arquidiocese e parte é das instituições que cuidam dos patrimônios históricos e tombados. O que se tem em cada uma das paróquias e comunidades que enfrentam essa dificuldade é uma equipe de interação e de diálogo com as autoridades competentes. Ainda está em trâmites, e como foi um ano eleitoral bastante conturbado, esperamos que no próximo ano a gente consiga avançar zelando pelo patrimônio e valorizando a história e a cultura do povo através das nossas igrejas, que não são apenas construções. É a história de vida de gerações e gerações.

 

Eu sou defensor da vida do começo ao fim. E se queremos defender a vida e ser contra o aborto

MidiaNews – O senhor está em Cuiabá há pouco mais de sete meses. Como tem sido recepção por parte dos fiéis?

 

Dom Mário Antônio da Silva – Muito boa e familiar, de muita proximidade com as pessoas nas comunidades. Tem sido para mim uma fonte de alegria essa missão da Arquidiocese de Cuiabá, tanto as comunidades da zona urbana de Cuiabá e Várzea Grande quanto também nas cidades do interior e na zona rural.  Já tive a experiência de ir a comunidades na zona rural, o que me causa grande alegria de estar com o povo na acolhida para celebrarmos juntos, seja a missa, seja uma procissão, momento de comensalidade, de partilha do pão, dos alimentos, da alegria, dos fatos da vida, das preocupações. São oportunidades de caminhar junto com o povo e conhecer pela voz das pessoas o que causa alegrias e tristezas.

 

MidiaNews – Qual a mensagem que o senhor deixa para o povo cuiabano para esse ano que se inicia em breve?

 

Dom Mário Antônio da Silva – Minha primeira mensagem é de gratidão pela acolhida, pela sabedoria que tem o nosso povo na sua simplicidade, mas na sua ternura e na sua proximidade comigo e, ao lado da gratidão, a esperança de tempos melhores. O natal para mim é o melhor que Deus nos oferece no final de ano, mas não para terminar no dia 25 de dezembro e ir só até 1° de janeiro, é para se prolongar durante toda a nossa vida.

 

Minha mensagem é Esta: Deixe Jesus nascer em seu coração, que ele cresça e que a mensagem dele produza muitos e muitos frutos para que a gente possa viver melhor a paz,  justiça, verdade, solidariedade, amor e felicidade, na família, na comunidade e em toda a sociedade.

 



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