Jurada de morte em seu país, venezuelana refaz a vida em VG
A trajetória da pedadoga Dora Maritza Mayurel Urquiola, de 44 anos, desde sua saída às pressas da Venezuela até a chegada em Cuiabá, foi cheia de perigos, assédios e humilhações, mas também de esperança e boas pessoas que cruzaram o seu caminho.
Os militares que estavam no governo não gostaram, eram eles que colocavam drogas nas instituições. Comecei a sanar todo esse vício e ser a perseguida e ameaçada de morte
Há cinco anos Dora levava uma vida confortável em seu país, ao lado dos pais, filhos e marido. Ela abriu mão de tudo isso e colocou a sua vida em risco para lutar por uma causa, o combate de drogas nas instituições escolares. Por causa disso, foi jurada de morte por militares corruptos.
Pedagoga com especialização em dificuldade de aprendizagem e direitos humanos, além de lecionar ela ocupava o cargo de coordenadora de Direitos Humanos no Ministério da Educação Estadual.
“Descobri uma quantidade de irregularidades e comecei a fazer o trabalho certo. Os militares que estavam no governo não gostaram, eram eles que colocavam drogas nas instituições. Comecei a sanar todo esse vício e ser a perseguida e ameaçada”, recorda.
O marido de Dora, que à época ocupava um cargo no Exército, recebeu o alerta da “sentença” de morte e a recomendação de deixar o país com a esposa. “Na hora falei: ‘Não vou sair do País, não sou eu quem está agindo errado, são eles os que têm que sair daqui”, diz.
A coisa mudou de figura quando as ameaças atingiram seus filhos e pais. Sua casa começou a ser vigiada. “Disseram que se eu saísse do país não tocariam neles. Era a vida da minha família que estava em jogo e eu deixei tudo para trás”.
Dora e o marido partiram às pressas e tinham como destino final o Chile, onde um irmão dela morava. Os planos, no entanto, tiveram uma guinada depois de o casal ser roubado na Colômbia e ter tido dinheiro apenas para chegar ao Peru.
Xenofobia, acidente e calote
O casal ficou quatro anos no Peru até não aguentar mais as humilhações a que eram submetidos apenas por serem venezuelanos. Enfrentaram desde salários menores para as mesmas funções a assédio moral e sexual constantes, ameaças e calotes.
Uma vez a diretora me disse ‘têm pais e crianças que estão encantados com a senhora, mas tem outros pais que falam que se você ficar aqui, vão tirar os seus filhos porque não querem que venezuelanos eduquem os eduquem’
“Tinha muita xenofobia e era mais trabalho e menos salário”. Dora conseguiu emprego em colégio particular e sentiu na pele a diferença de tratamento. “Me pagavam quase a metade do que aos demais professores, mesmo sendo titulada e com a documentação em dia. De um salário de 1,2 mil “soles” [moeda peruana] me pagavam 650”.
“Uma vez a diretora me disse: ‘Tem pais e crianças que estão encantados com a senhora, mas tem outros pais que falam que se você ficar aqui, vão tirar os seus filhos porque não querem que venezuelanos os eduquem’”.
Em uma noite, enquanto trabalhava em loja de artesanatos de um shopping popular, Dora recebeu a visita de dois capangas de seu “carrasco”. “Me ameaçaram com a arma. Acreditavam que eu tinha levado as provas para incriminá-los, mas eu não trouxe nada, eu queimei absolutamente tudo. Era a vida dos meus filhos que estava em risco”.
Eentre os tantos desafios, o marido de Dora quase morreu ao capotar em uma descida após o carro alugado que dirigia como Uber perder os freios. O proprietário foi alertado sobre os problemas mecânicos, mas nada fez a respeito. “Por um milagre não morreu”.
A gota d’água foi o calote de seis meses de trabalho em uma fábrica de colchões. Duas vezes por ano o trabalhador no Peru tem direito de sacar um fundo especial, como o FGTS, em conta. Na noite anterior ao recebimento, o casal foi mandado embora sem nenhum sol dos que lhes correspondia.
O Chile já não era uma opção diante de tanta burocracia para entrar e eles não queriam agir na clandestinidade. “Jamais fizemos nada ilegal e não vamos fazer a essa altura. Saímos da Venezuela por lutar contra uma ilegalidade, não seria justo, não seria ético”, disse.
Destino Brasil
Reprodução
Dora é Pedagoga com especialização em dificuldade de aprendizagem e direitos humanos
Sem saber o idioma, o casal embarcou rumo ao Brasil. Dora lembra até hoje das palavras do policial federal que os recebeu na fronteira e ainda se emociona. “O Brasil os recebe de braços abertos. Somos irmãos dos venezuelanos, bem vindos. A nossa terra agora também é sua”.
“Foi uma sensação de liberdade, segurança, de não entrar em xenofobia. Eu comecei a chorar. Lembro e sinto a mesma sensação daquele dia”, diz.
O destino final era Florianópolis, mas mais uma vez essa história teria uma guinada. O dinheiro que o casal pensou ser suficiente para chegar à capital catarinense sequer deu para as refeições. Foram oito dias de viagem de Lima, em Peru, até chegar ao terminal rodoviário de Cuiabá.
Dentro do ônibus, com a pandemia ainda em alta, a tosse incessante de um passageiro chamou a atenção. “Sabia que era uma tosse de cigarro e, pela idade, aquele homem me lembrou o meu pai”.
A pedagoga oferecia antialérgicos e balas para a tosse e o homem retribuía com pipoca. E foi com o estômago forrado apenas de pipocas que o casal desembarcou em Cuiabá com nada além R$ 7 no bolso.
Novo capitulo
A primeira morada em Cuiabá foi o Centro de Pastoral para Migrantes, onde por pouco não foram recebidos. Eles chegaram em um sábado, dia em que não são recebidos novos membros.
“Me perguntaram por que saí do Peru. Contei de quando agarraram minhas partes, quando um homem que estava de carro freou e me disse que todas as venezuelanas éramos putas e me mostrou seu pênis. Eu estava saindo da missa”.
“Contei que cansei das humilhações, de que não valorizassem a minha profissão, o meu trabalho e tudo o que eu posso aportar para um país. Tenho bons amigos no Peru, mas para lá eu não volto nem para turismo”.
Já me chamaram de venezuelana de merda, que somos todas putas e que eu tinha que ir trabalhar no Zero. Já me perguntaram quanto eu cobrava. Não sou prostituta e se fosse também não teriam o direito de me humilhar
Novos desafios
Ao longo de mais de um ano em Cuiabá e agora em Várzea Grande, Dora e o marido passaram por muitos perrengues, mas, ainda assim, é aqui que eles decidiram fincar raízes. “Se papai Deus nos deixou nesta cidade, é porque aqui tem algo bom para nós”.
“Nenhum país está preparado para uma imigração tão grande e repentina como foi a da Venezuela. Mas o Brasil é o nosso irmão de território, temos o mesmo tipo de vegetação, de diversidade de clima. A diferença é a extensão”, afirma.
Dora diz que mesmo em menor intensidade do que no Peru, segue sendo vítima de xenofobia. “Já me chamaram de venezuelana de merda, que somos todas putas e que eu tinha que ir trabalhar no Zero. Já me perguntaram quanto eu cobrava. Não sou prostituta. E se fosse também não teriam o direito de me humilhar”.
“Essa venezuelana de merda tem título universitário e especializações que aqui só servem para juntar poeira”.
Dora não consegue exercer sua profissão devido aos custos da tradução dos documentos, que devem ser feitos por um tradutor juramentado.
Apesar da falta de oportunidades no mercado de trabalho de Cuiabá e região para os estrangeiros, Dora e o marido conseguiram uma colocação em um mercado atacadista de Várzea Grande. Agora recebem o mesmo salário que colegas de função.
Como caixa, ela lida diariamente com o público e sente na pele os olhares atravessados e julgamentos. “O outro dia passou no meu caixa um senhor com a filha que me disse: ‘Ah você é venezuelana, você não presta’”.
Essa venezuelana de merda tem título universitário e especializações que aqui só servem para juntar poeira
Pouco depois a filha se juntou a ele nos insultos. Segundo Dora, os episódios acontecem de duas a três vezes por semana.
Sonhos
Apesar de todos os obstáculos, o casal tem planos de fincar e construir um cantinho para chamar de seu, mais para frente, quem sabe, ainda montar um café. “Um lugar agradável, com música boa para as pessoas compartilharem com os amigos e a família”.
Dora e o marido são melhores amigos desde a infância, e só há seis anos, depois de se divorciarem, deram início à relação. Eles adiaram o sonho de se casar, enquanto tentavam sobreviver a essa avalanche de problemas, mas esperam poder fazer isso em breve.
“Sou muito agradecida por todas as pessoas que Deus colocou no meu caminho, com a Pastoral que, apesar de tudo, é como se fosse nossa família”.
“Não me arrependo de nada, foi a minha decisão lutar e faria tudo de novo outras mil vezes. A luta que eu travei permitiu a muitos dos meus estudantes que saíssem das drogas. Eu não podia permitir que isso acontecesse em baixo do meu nariz”.