Ofensiva contra aborto legal passa por Legislativo, Executivo e Judiciário

Imagine a cena: uma mulher que, por lei, tem o direito de interromper uma gravidez procura um serviço público de saúde para realizar o aborto. Lá, é submetida a vídeos que detalham os métodos cirúrgicos usados no procedimento, como aspiração intrauterina, além de imagens e ilustrações que apresentam o desenvolvimento do feto semana a semana.

 

Também recebe uma lista de possíveis efeitos colaterais físicos e psíquicos decorrentes do aborto, que inclui “comportamento autopunitivo”, “transtorno alimentar”, “sentimentos de remorso e culpa” e “choro desmotivado, medos e pesadelos”. Por fim, é orientada sobre a possibilidade de seguir com a gravidez e entregar o filho à adoção.

 

É isso que prevê um projeto de lei aprovado na Câmara Municipal de Maceió, que aguarda sanção ou veto do prefeito João Henrique Caldas (PL). A proposta, de autoria do vereador Leonardo Dias (PL), foi aprovada em 9 de fevereiro com 22 votos a favor —e nenhum contra. Dois vereadores faltaram à sessão, e uma vereadora, Teca Nelma (PSD), se absteve.

 

“Eu me recusei a votar, disse que não votaria um projeto inconstitucional. Caso essa lei seja promulgada, nós iremos ao Ministério Público pedir sua derrubada”, disse Teca.

 

Parecer do Procurador-Geral da Câmara Municipal já havia alertado sobre a inconstitucionalidade do projeto e recomendado seu arquivamento, uma vez que a Casa não teria competência para legislar sobre a matéria, mas a proposta avançou mesmo assim. Uma audiência pública para debater o tema foi realizada na última segunda (6).

 

“Para mim, o que [o texto] propõe é igual a tortura. E esse não é o único projeto que existe nesta Casa sobre isso, há um movimento conservador em Maceió que tem ganhado espaço na Câmara. Corremos o risco de perder direitos já conquistados pela luta das mulheres”, acrescentou a vereadora Teca Nelma, citando iniciativas como o Dia do Nascituro e a Semana da Vida, em discussão.

 

O aborto é autorizado em três casos no Brasil: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Nas demais situações, a interrupção da gravidez é considerada crime, de acordo com o Código Penal, de 1940. A legislação estabelece que a mulher que provocar um aborto em si mesma pode ser condenada a pena de um a três anos de prisão.

 

Para a promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas Paes, do Ministério Público de São Paulo, tentativas de dificultar o acesso das mulheres ao aborto legal estão presentes no Legislativo, no Executivo e no Judiciário.

 

“Esse movimento conservador existe em todos os Poderes, inclusive no sistema de Justiça. Houve um caso recente em que tentou-se aplicar o Estatuto do Nascituro, sendo que esse projeto não foi nem sequer aprovado. Dificultam o acesso de mulheres e meninas ao aborto legal usando legislações que não existem”, disse.

 

O caso a que a promotora se refere, de grande repercussão no país, é o de uma menina de 12 anos do Piauí, vítima de estupro e grávida pela segunda vez. Ela, que já tem um filho e encontra-se atualmente no sétimo mês de gestação, teve o direito ao aborto legal negado nas duas ocasiões.

 

Na movimentação mais recente, a Justiça do Piauí determinou que uma defensora pública atuasse em favor do feto, como “curador especial”, algo previsto no projeto de lei que ficou conhecido como Estatuto do Nascituro. Apresentada em 2007, a proposta tenta impedir o aborto legal até mesmo em casos de estupro. Debatido há 15 anos na Câmara dos Deputados, o texto seria votado em dezembro do ano passado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Casa, mas foi retirado da pauta.

 

Outro caso de destaque ocorreu em Santa Catarina. Uma criança de 11 anos que buscava na Justiça a interrupção da gravidez foi induzida a desistir do procedimento pela juíza do caso, que chegou a perguntar se a criança não “suportaria ficar mais um pouquinho” com a gestação. Diferentemente do ocorreu com a menina do Piauí, a garota de Santa Catarina conseguiu, ao fim, o direito ao aborto.

 

Na avaliação de Paes, a ofensiva contra os direitos das mulheres ocorre, em primeiro lugar, na ausência de políticas públicas, e em segundo lugar na burocratização do processo.

 

“São formas conservadoras de pensamento, que acabam misturando a questão moral, a questão religiosa e o próprio machismo arraigado na sociedade. Isso ocorre em duas frentes: no acesso desigual aos serviços de saúde e na imposição de novas burocracias. Começam, por exemplo, a exigir autorização judicial para realizar um aborto legal, sendo que a legislação não prevê isso, e a legislação é clara.”

 

Exemplo disso é portaria editada em 2020 pelo Ministério da Saúde do governo Jair Bolsonaro (PL), já revogada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que determinava que o profissional de saúde deveria comunicar o aborto à autoridade policial.

 

Coordenadora do ambulatório de violência sexual do Hospital da Mulher (antigo Pérola Byington) em São Paulo, a psicóloga Daniela Pedroso afirma que medidas como essas atrasam a chegada da mulher ou menina aos serviços de saúde, ampliando os riscos à sua saúde física e mental.

 

“Essas portarias amedrontaram as mulheres. Chegamos a receber, no ambulatório, ligações em que nos perguntavam: ‘vocês vão ter que mandar o meu caso para a polícia?’. Ainda hoje a gente recebe mulheres que demoram a chegar ao hospital porque foram atrás de um boletim de ocorrência [sobre estupro].”

 

De acordo com a coordenadora, de outubro de 2022 a fevereiro de 2023 —ou seja, desde que o Seconci-SP (Serviço Social da Construção Civil de São Paulo) passou a administrar a unidade, o Hospital da Mulher realizou 97 procedimentos de aborto legal.

 

“O número vai ao encontro da média que a gente sempre teve, de 300 casos por ano”, afirma a psicóloga.

 

O protocolo adotado no Hospital da Mulher, que segue norma técnica do Ministério da Saúde, prevê possibilidade de aborto em casos com até 20 semanas de idade gestacional ou peso fetal inferior a 500 gramas.

 

“A mulher chega ao serviço e faz uma ultrassonografia obstétrica para que a gente saiba a idade gestacional e verifique a celeridade que o caso exige.

Depois ela passa por uma avaliação com a equipe multidisciplinar, com assistente social, psicóloga e ginecologista. E então tem o procedimento agendado para uma nova data. Isso leva em média duas semanas, desde a chegada dela até a realização do procedimento”, afirma Pedroso.

 

“Não é necessário boletim de ocorrência policial, tampouco alvará judicial. É muito importante que a gente lembre, sempre, que não existe essa necessidade. E nos casos de estupro de vulnerável, a celeridade deve ser ainda maior”, completa.

 



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