Juiz: “Facção diz dar segurança, mas cobra caro; cobra sangue”

O juiz Geraldo Fidelis está há uma década à frente da Vara de Execuções Penais de Cuiabá, tempo em que pôde refletir sobre os mecanismos da criminalidade e a melhor maneira de combatê-la.

A principal, de maneira equivocada, é a de segurança para o pessoal do bairro

  

Para o magistrado, a sociedade precisa estar um passo à frente das facções, que estão cada vez mais fortes.  “Se eles são organizados, temos que ser mais organizados que eles”, diz. 

  

Conforme o magistrado, é preciso colocar fim ao que ele chama de paraestado, que é a infiltração das facções inclusive naquilo que deveria ser serviço do poder público.

  

Essa presença das facções, diz Fidelis, causa sensações antagônicas. “A principal, de maneira equivocada, é a de segurança para o pessoal do bairro, que eles dizem dar segurança aos bairros, mas em troca eles cobram caro, cobram sangue, inclusive”, diz.

  

Nesta entrevista ao MidiaNews, o juiz ainda falou sobre a estrutura das cadeias no Estado, seu ponto de vista sobre pena de morte e a constatação de que a resposta para o crime não está na cadeia.

  

Confira os principais trechos da entrevista:

 

Midianews – Dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) apontam que há um déficit de quase mil vagas no sistema prisional de Mato Grosso. Qual a real situação dos presídios no Estado?

 

Geraldo Fidelis – Não há superlotação. No entanto é necessário uma classificação. Estamos em uma outra fase. Antes da pandemia, o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Penitenciário e Socioeducativo de Mato Grosso, na administração do desembargador Orlando Perri, fez uma visita em 36 unidades penitenciárias do Estado e viu situações horríveis, de lugar em que cabiam 12 pessoas ter 40. 

 

Naquela ocasião havia um déficit de 6 mil vagas. Eram 12 mil presos para 6.300 vagas. Havia pessoas sobrepostas. Uma grande parceria movimentada pelo Ministério Público propôs um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) para o governador do Estado, para que houvesse construção de novas vagas e reforma de outras. 

 

Hoje, nesses três anos, um dos mais difíceis por conta da pandemia, Mato Grosso teve uma evolução enorme, em regime fechado, que hoje em dia tem quase nada de déficit. Estamos empatados. Falta a mínima situação de 200 a 300 vagas em razão de uma reforma que está sendo feita no raio 6 da PCE.

 

MidiaNews

Geraldo Fidelis

Juiz Geraldo Fidelis: “Naquela época, presos dormiam amarrados na grade para não cair em cima do outro”

MidiaNews – O senhor chegou a dar uma entrevista ao MidiaNews, há alguns anos, dizendo que pessoas dormiam com a cabeça encostada no vaso. Isso não acontece mais?

 

Geraldo Fidelis – Não tem mais, isso não existe mais. Naquela época, dormiam amarrados na grade para não cair em cima do outro. Mas se você me perguntar se está bom, digo: Não está bom. Tem muito chão pela frente, mas muito mesmo. A estrada é grande e é longa demais. 

 

MidiaNews – Qual o maior problema hoje? 

 

Geraldo Fidelis – A saúde. Nós cobramos e o Estado parece que tem dado uma resposta na contratação de médicos e na telemedicina, para que seja instalada em todas as unidades. E também na classificação desses recuperandos.

 

Com um panorama já coberto, são 11.700 pessoas reclusas para 11.500 vagas, dá para fazer uma classificação de acordo com o perfil. Por exemplo, presos definitivos, separados dos presos provisórios, e também pela espécie de crime. 

 

Isso para quê? Para fazer o isolamento das pessoas que não têm vocação de melhorar, pessoas que estão em situações de dificuldade, da grande maioria que tem propensão a voltar ao trabalho, para a escola e para a sua família. 

 

Dá para trabalhar, sim, dá para recuperar pessoas. Quando se fala de execução penal, quando se fala em sistema penitenciário, não se pensa no regime fechado para sempre. Ao contrário, o projeto é futuro: de liberdade, harmonizada, buscando combater a discriminação para que voltem para a sociedade e não comentam crimes.

 

Se a sociedade der as costas para essas pessoas, tem um grupo equivocado de pessoas que não vão dar as costas. Vão se organizar, vão chamá-los, vão arrebanhá-los para a organização do crime. E vai retornar contra quem? Contra a própria sociedade.

 

MidiaNews – Ainda a respeito da saúde, o sistema penitenciário enfrenta surtos de tuberculose?

 

Geraldo Fidelis – Tem surtos, mas temos que verificar. Hoje, temos informações de que há um surto de hanseníase na penitenciária feminina. Só que o grande problema é que elas precisam querer se curar, se tratar.

 

MidiaNews – As mulheres presas têm um perfil diferente, não é?

 

A mulher que é levada à cadeira fica isolada. A família isola, a sociedade a isola. A grande maioria delas sequer recebe visitas

Geraldo Fidelis – A mulher que é levada à cadeia fica isolada. A família isola, a sociedade a isola. A grande maioria delas sequer recebe visitas. Enquanto os homens têm filas para visitá-los, as mulheres têm um ou outro gato pingado.

 

E quando ganham a liberdade, poucas têm casas para voltar. Elas vão morar em uma república de mulheres que um dia estiveram presas, porque elas são rechaçadas por parte da família.

 

MidiaNews – Há um perfil do crime que elas cometem?

 

Geraldo Fidelis – Cerca de 80% estão envolvidas com furtos, crime contra o patrimônio e voltados à droga. Geralmente, para acobertar e proteger seu companheiro. Elas são vítimas duas vezes: de violência doméstica e do crime. Elas vão para cadeias como mulas, para entrar com drogas, ou na maioria das vezes é porque um preso foi ameaçado na cadeia e se alguma pessoa da família dele não levar droga para dentro do presídio, ele leva um salve (castigo). Elas são levadas a cometer um crime para proteger o marido lá dentro.

 

MidiaNews – Volta e meia a gente se lê nos noticiários sobre crimes praticados a mando de pessoas que estão dentro dos presídios. Por que é tão difícil impedir essas ordens? 

 

[O mundo do crime] Busca a fragilidade das pessoas para poder ter acesso a equipamentos proibidos dentro da penitenciária

Geraldo Fidelis – A grande questão é a tecnologia. Temos que sempre estar um passo à frente. Lógico que o mundo crime também busca se equipar tecnologicamente. Busca a fragilidade das pessoas para poder ter acesso a equipamentos proibidos dentro da penitenciária. 

 

Para fazer frente a isso, o sistema penitenciário tem que estar sempre buscando meios de fechar essas válvulas.

 

MidiaNews – A gente sabe que o Comando Vermelho tem forte presença em muitos bairros de grandes cidades de Mato Grosso, a ponto de, em alguns casos, fazer o papel que caberia ao Estado. Não é perigoso demais para uma sociedade permitir que isso aconteça?

 

Geraldo Fidelis – Eu não trato nenhuma pessoa olhando a camisa equivocada que ela veste. Eu a trato como pessoa, independente de quem seja. E cabe ao sistema penitenciário, através da sua inteligência, fazer as separações internas para garantir a segurança da sociedade, a fim de evitar crescer lideranças. 

 

Eu já errei nesse trato com pessoas. Há dez anos, quando cheguei aqui, e fazia reuniões para conversar com determinados líderes. Não se faz isso. Você vai ter que falar com a massa carcerária como um inteiro. A partir do momento que destaco uma pessoa ou outra, eu dou a ela a liderança. 

 

Eu falo com um todo. Se eventualmente, houver pedido para separação, vai ser analisado, não só por mim, mas por um juiz, um colegiado de juízes. Em Mato Grosso temos condições de manter as pessoas privadas de liberdade, independente do sistema federal.

 

MidiaNews – Mas não seria importante isolar esses líderes? 

 

Geraldo Fidelis – Aqui temos condições e equipamento necessário para fazer esse isolamento. 

 

MidiaNews – Mas juntos esses lideres também não podem os fortalecer?

 

Eu acredito que a PCE, no Raio 8, tem equipamento necessário para Mato Grosso não precisar utilizar o sistema de penitenciária federal

Geraldo Fidelis – Nós temos equipamento para fazer o isolamento individual, se for necessário. Eu acredito que a PCE, no raio 8, tem equipamento necessário para Mato Grosso não precisar utilizar o sistema de penitenciária federal. Nós podemos cuidar das nossas próprias pessoas. 

 

No entanto, existem algumas pessoas que estão indo no regime federal, porque fragilizaram o sistema local. Mas são duas ou três pessoas.

 

MidiaNews – Então, Mato Grosso não necessitaria de um presídio de segurança máxima?

 

Geraldo Fidelis – Não, nós já temos. Que seria esse raio 8 da PCE. Não precisa de ser de segurança máxima, não dou esse título. Lá, faz o isolamento necessário, dentro do que a lei permite. Deixa de ser necessário fazer pedidos para encaminhamento para o presídio federal. Não preciso mais falar de Mossoró (RN), de Catanduva (SP), ou de qualquer outro dos seis federais.

 

MidiaNews – No início desse houve uma operação que, entre os alvos, estava Sandro Louco, um dos líderes do Comando Vermelho em Mato Grosso e considerado de alta periculosidade. Por que o Estado não consegue enfraquecer esse homem?

 

Geraldo Fidelis – Ele estava no raio normal, no convívio normal. Hoje em dia está isolado. E essa foi uma decisão que não pagou nem na execução penal, foi a própria vara do crime organizado que fez essa solicitação. 

 

MidiaNews – A ação das facções criminosas trouxe algum impacto para o trabalho de um juiz como o senhor?

 

Geraldo Fidelis – Quando cheguei, há 10 anos, já havia essas “cores do crime”. Como falei, trato as pessoas internamente sem olhar a camisa. Eu não posso olhar a camisa.

 

MidiaNews – O grande problema do crime hoje no Brasil seriam essas facções? 

 

Se eles são organizados, a sociedade e o nosso aparato de segurança tem que estar sempre um passo à frente

Geraldo Fidelis – Penso que temos que estar sempre um passo à frente do crime organizado. Se eles são organizados, a sociedade e o nosso aparato de segurança têm que estar sempre um passo à frente. Se eles são organizados, temos que ser mais organizados que eles. 

 

Essa contenda que estoura especialmente nas fronteiras, nas regiões periféricas, cria sensações antagônicas. A principal, de maneira equivocada, é a de segurança para o pessoal do bairro, que eles dizem dar segurança aos bairros, mas em troca eles cobram caro, cobram sangue, inclusive. Nós não podemos viver no paraestado. Isso é um equívoco, não é bom para o nosso sistema. Nós temos que ter nossas organizações regulares. 

 

MidiaNews – Isso é tema de segurança pública ou é uma discussão mais ampla? 

 

Geraldo Fidelis – É mais ampla. É uma questão social, uma questão que envolve vários setores, vários nichos de discussão, tanto a sociologia, quanto a área de segurança pública, quanto a área penitenciária também. 

 

A grande maioria dos líderes dessas organizações estão presos. Então tem que fazer o isolamento para não ter esse contato, mas sabendo que sai uma cabeça e nasce outra. E nasce onde? Lá atrás, no núcleo da família, na questão educacional, no racismo, de preconceito. A gente tem uma revolta social ali também.

 

Quem está na nossa cadeia? Setenta por cento das pessoas que estão nas nossas cadeias são pessoas negras, o preto, o pardo. São pessoas que têm menos chance na disputa no mercado de trabalho. Então, sofrem mais preconceito.

 

A resposta não está na cadeia. Quer resolver o problema? Invista na criança, desde pequeno, para não ter adultos presos. 

 

MidiaNews – Recentemente, o procurador-geral de Justiça Deosdete Cruz Junior divulgou uma nota defendendo com veemência as audiências remotas, algo que foi criticado por diversos setores. Qual é sua a opinião a esse respeito?

 

Geraldo Fidelis – A pandemia mostrou inúmeras oportunidades, ainda mais num estado gigantesco como Mato Grosso. A regra tem que ser presencial. 

 

Cada afeição de um rosto está sendo interpretada por mim. Se eu estiver com a mão para baixo, se eu estou tremendo, se estou olhando para cima, procurando resposta… O corpo fala. Isso é muito importante. Eu penso que nós temos que olhar com muita atenção. A regra deve ser a presença. Situação excepcional tem que ser analisada de acordo com sua particularidade.

 

MidiaNews – Com o crescente poder das facções dentro dos presídios, cresceu também a discussão de penas alternativas para crimes leves, para evitar que esses presos de baixa periculosidade se misturem com faccionados. Qual a sua opinião do senhor?

 

Victor Ostetti/MidiaNews

Geraldo Fidelis

Geraldo Fidelis: “prisão não é resposta para uma sociedade mais tranquila”

Geraldo Fidelis – A entrada no sistema penitenciário é um meio de seleção de pessoas para fazer esse batismo no crime. Diante disso, cada caso é um caso. Acho que prisão não é resposta para uma sociedade mais tranquila. Nossas penas não são perpétuas, não temos pena de morte. Todas as pessoas que estão presas um dia vão sair. Qual o tipo de pessoas que queremos que saia da penitenciária? 

 

Diante disso, temos que entrar com meios de reinserção social. Trabalho profissionalizante. Vai costurar bola lá dentro? Vai sair e não vai costurar aqui fora… É preciso trabalho profissionalizante para que quando estiver aqui fora possa dar continuidade ao trabalho. E não só trabalho, a educação profissionalizante também. 

 

Nós estamos numa situação favorável em Mato Grosso? Sim. Em relação a outros estados, muito melhor, sem dúvida. Mas nós temos que fazer a seleção dessas pessoas para dar as vocações necessárias.

 

MidiaNews – Recentemente, o STF retomou a discussão sobre a descriminalização do porte de droga. Qual é o seu posicionamento a respeito disso? 

 

Geraldo Fidelis – É uma sessão delicada. Eu não tenho uma posição formada sobre isso. O estado social precisa ser presente. O estado que faz o acompanhamento, faz o abraçamento dessas pessoas. Isso é muito importante, porque essas pessoas, uma vez que caem na penitenciária, vão buscar meios para dar continuidade ao material proibido e vão sair pioradas. 

  

MidiaNews – O senhor é favorável à pena de morte ou prisão perpétua?

 

Geraldo Fidelis – Não, eu sou adverso. Não tem por quê. O crime contra a vida é o pior. Você tira o bem jurídico mais relevante da pessoa. Nós não temos direito.

 

MidiaNews – Recentemente, tivemos a discussão sobre a implantação do sistema Apac (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) aqui em Mato Grosso. Acha que a solução está nesse sistema?

 

Geraldo Fidelis – Não. Ele é mais um método a ser aplicado. Importante. Acredito na Apac. Já visitei umas quatro ou cinco vezes o sistema Apac em Minas Gerais. 

 

“Quem pode acreditar em um sistema que tem 18 mil saídas sem escolta, não há nenhuma fuga. Impossível. Quem pode confiar em um sistema que quem tem a chave da cadeia é a própria pessoa privada de liberdade? É mentira isso aí”. Assim eu pensava. E dei uma de São Tomé e fui ver para crer. 

 

Grande parte das pessoas que estão lá dentro não voltam mais para o crime, são disciplinados. Nós temos público para isso. O público que estava no antigo CRC (Centro de Ressocialização de Cuiabá) e hoje está no Ahmenon [penitenciária de Várzea Grande], pode ser colocado num sistema como esse. Mas são todos os casos? Não. 

 

Eu vou fazer o máximo possível para que a Apac dê certo em várias cidades em Mato Grosso.

 

MidiaNews – O senhor é um juiz de execuções penais e está diariamente cara a cara com criminosos de altíssima periculosidade. O senhor já foi ameaçado de morte? 

 

Geraldo Fidelis – Nunca. 

 

MidiaNews – Nunca temeu pela sua vida?

 

Geraldo Fidelis – Eu respeito as pessoas. Eu falo olhando nos olhos. Eu não minto. Eles sabem que comigo vão ter o que é de direito. Em mim, não vão encontrar uma pessoa perseguidora. Não vou perseguir ninguém.

 

Eu posso errar? Posso errar. Acima de mim tem o Tribunal de Justiça, com três juízes mais experientes, que vão decidir em colegiado e podem consertar minha decisão. Tenho certeza, mesmo errando, quero acertar. Eles sabendo disso, me tratam com respeito. Eu respeito eles e a família deles.

 

 

Mídia News