MidiaNews | Delação sem o MPE
Muito falada nos últimos dias, a delação premiada de Mauro Cid, ajudante de ordens de Jair Bolsonaro na Presidência da República, causou controvérsia Brasil afora, não só pelo seu potencial alcance incriminador, mas, sobretudo, pelo aparente fato de não ter contado com a participação do Ministério Público Federal.
Afora a obtenção da liberdade após homologação de acordo, prática que revela a prisão preventiva como meio moderno de “obtenção da verdade”, questiona-se se o pacto premial terá validade, haja vista a não participação do Ministério Público Federal.
Segundo noticiado pelo Jornal Folha de São Paulo, “em rede social, Aras [Procurador-Geral da República] escreveu que o Ministério Público Federal não concorda com acordos de colaboração firmados pela PF, como foi o caso do celebrado pelo militar”.
A questão que se coloca, para além do caso específico de CID, é interessante do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial e pode ser resumida na seguinte indagação: pode a autoridade policial celebrar acordo de colaboração premiada sem a participação efetiva do Ministério Público, titular da ação penal?
A resposta deve levar em consideração, pelo menos, três aspectos: o primeiro, relativo ao papel da polícia investigativa; o segundo, à titularidade para o exercício da ação penal; e o terceiro, ao regramento legal sobre o tema.
Quanto ao primeiro, convém destacar que a polícia investigativa não detém os rumos da ação penal, uma vez que sua função precípua é a obtenção de elementos de informação que venham a servir de subsídio para o Ministério Público, titular da ação penal, poder oferecer denúncia contra determinada pessoa.
No que diz respeito ao segundo critério, que se correlaciona com o primeiro, caso as atividades investigativas não tenham sido suficientes para a formação da opinio delicti, pode o Ministério Público inclusive requerer novas diligências (art. 16, CPP).
Sublinha-se, ainda, que tampouco é necessária a existência de inquérito policial para o oferecimento de denúncia, visto que se trata de procedimento dispensável, isto é, havendo elementos de informação aptos à formação da opinio delicti, o inquérito é despiciendo, justamente porque sua função principal é guarnecer o Ministério Público, este sim, titular da ação penal.
O terceiro ponto, talvez o mais importante para responder à questão inicial, diz respeito ao regramento legal atinente à legitimidade para a celebração de acordo de colaboração premiada, temática expressamente disciplinada pela Lei Federal 12.850/2013.
O art. 4º, §6º, da Lei Federal 12.850/2013 é claro ao dispor que “o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor”.
Pela leitura do dispositivo, não ficam dúvidas acerca da “legitimidade mitigada” do delegado de polícia para a celebração de acordo de delação premiada: sua atuação é restrita à fase do inquérito e vinculada à manifestação do Ministério Público.
Sobre a legitimidade do delegado, já se manifestou no sentido de que:
[…] a atuação da autoridade policial será sempre dependente da manifestação positiva do Ministério Público, porquanto, repise-se, sendo este o detentor da ação penal pública, qualquer atuação que lhe impeça o regular exercício desta mostrar-se-ia de todo inconstitucional, uma vez que sua legitimidade é corolário do próprio texto constitucional.
Nessa mesma linha, interessantes são as ponderações de Luísa Walter da Rosa, para quem:
Num sistema processual penal em que é conferido ao Ministério Público a titularidade da ação penal, o poder de atuar como revisor da atuação policial e fiscal da lei e à polícia a expertise de investigar, permitir que um acordo seja homologado com a discordância do Ministério Público é inverter os papéis institucionais, sobrecarregar o sistema e ir contra a lógica da justiça penal negociada que prima pela celeridade, eficiência e autonomia privada.
Ainda de acordo com a autora, “seja nos casos em que o Ministério Público apresente recusa motivada da proposta oferecida pelo pretenso colaborador, ou quando este procura inicialmente a autoridade policial para firmar o acordo, e o MP se posiciona de maneira contrária à sua homologação, entende-se que essa manifestação ministerial é vinculante, sendo necessário, portanto, a anuência do órgão acusatório para que o acordo produza efeitos”.
Não obstante o referido posicionamento, deve-se levar em consideração o fato de que, a despeito de figurar como meio de obtenção de prova, a delação premiada é, de igual forma, um desdobramento do exercício da ampla defesa, “de modo que não parece equivocada a conclusão segundo a qual, em caso de negativa do parquet na celebração do acordo, pode o colaborador negociar diretamente com a autoridade policial, que também ‘(re)presenta’ o Estado, e tal negocio gerar o direito subjetivo ao réu, se restarem atingidos os objetivos”.
Sustenta-se a possibilidade de celebração direta com a polícia investigativa por uma questão de interpretação benéfica, chancelada pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento da ADI 5508/DF, na qual se destacou a possibilidade de concessão de benefícios inclusive nos casos em que sequer há acordo de colaboração expresso, isto é, na hipótese de colaboração premiada unilateral.
Não se pode olvidar, no entanto, adverte Vinicius Vasconcelos, que o Supremo Tribunal Federal, em julgado posterior à ADI 5508/DF, “acolheu questão preliminar suscitada pela PGR no sentido de que o acordo não poderia ter sido firmado com a polícia sem a concordância do Ministério Público”.
Nesse contexto, diante da controversa legitimidade da polícia investigativa para a celebração de acordo de colaboração premiada, defende-se que “parece mais sensato, por medida de maior segurança ao colaborador, proceder-se às negociações diretamente com o dominus litis, ou com este em conjunto com a autoridade policial; somente em caso de negativa do parquet, negociar-se-ia, exclusivamente, com a autoridade policial”.
Vinicius Vasconcelos, na mesma direção, entende que, em uma eventual situação de ilegítima negativa do Ministério Público em realizar o acordo, estaria o delegado de polícia legitimado à propositura do acordo. Trata-se, defende o autor, “de conjuntura em que se deve dar primazia ao direito do acusado à colaboração premiada, que, em respeito à legalidade do procedimento e à segurança jurídica, impõe a realização do acordo para a confirmação a ser desenvolvida posteriormente”.
Conclui-se, portanto, que i. a legitimidade da autoridade policial para a celebração de acordo de colaboração premiada é mitigada, restrita à fase do inquérito e vinculada à manifestação do Ministério Público; ii. o colaborador não pode, porém, ficar à mercê da vontade do órgão oficial de acusação, sendo possível a concessão de prêmios em decorrência de sua colaboração, ainda que inexistente um acordo expresso (delação premiada unilateral); iii. por questões de segurança do colaborador, deve-se recorrer à negociação direta com a autoridade policial, apenas em casos de negativa por parte do Ministério Público.
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista.