MidiaNews | Audiências de custódia
Imaginem-se num dia típico no sistema de justiça criminal brasileiro. Indivíduos furtam um veículo e posteriormente são presos em flagrante em trabalho ostensivo da Polícia Militar. No entanto, são liberados em menos de 24 horas após a captura, durante uma audiência de custódia.
Não raras vezes, policiais, apresentadores de TV, políticos, religiosos etc. comentando o caso, expressam frustração com a rápida soltura dos criminosos, destacando o ciclo do “prende e solta” como uma característica notória do sistema judiciário do país, às vezes demonizando as audiências de custódia, outras vezes culpando o juiz.
Ressaltam que, apesar dos esforços da polícia em recuperar o veículo e prender os culpados, o juiz rapidamente os colocou em liberdade, evidenciando um desafio comum enfrentado pelas autoridades na luta contra a criminalidade no Brasil.
Considerando o exposto, surge a questão: o cumprimento rigoroso das garantias previstas na Constituição e nos acordos internacionais, particularmente no contexto das liberdades concedidas em audiências de custódia, contribui para elevar os índices de criminalidade, afetando negativamente a sociedade? Há uma relação direta entre a adesão estrita a essa garantia e um crescimento nos índices de criminalidade?
Em 2015, o Supremo Tribunal Federal determinou aos juízes e tribunais brasileiros que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento da pessoa privada de liberdade perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, analisando-se imediatamente a sua liberdade.
Em verdade, conforme o SISDEPEN, em 2023 a população prisional brasileira atingiu a impressionante marca de 649.592 presos em celas físicas, colocando no Brasil o triste predicado de um dos países que mais prendem no mundo, não só em números absolutos, como também proporcionalmente pela quantidade de encarcerados a cada 100 mil habitantes[1].
Importante ressaltar que em 2000 o Brasil abrigava 135.710 pessoas privadas de liberdade, portanto a população prisional brasileira sofreu um absurdo aumento de mais de 400% em 23 anos.
Apesar do superlativo aumento das pessoas privadas de liberdade, não houve uma diminuição da criminalidade e, ainda, gerou como consequência a proliferação dentro das penitenciárias das facções criminosas, ou gangues, que se aproveitaram do caos prisional e passaram a usar os locais de privação de liberdade como quartel general e suporte de recrutamento.
Cita-se, a exemplo, o PCC – Primeiro Comando da Capital – que se tornou rapidamente uma das maiores organizações criminosas do mundo, conforme Europol-agência policial europeia.
No contexto do ano de 2014, o projeto das audiências de custódia surgiu a partir do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, sob a presidência do Ministro Ricardo Lewandowski, com vistas à situação de tortura massiva no sistema prisional brasileiro como forma de reação ao alto índice de prisões provisórias no Brasil e excesso de presos acima das vagas nos presídios.
Após 10 anos de audiências de custódia, detecta-se que houve um relevante avanço civilizatório e um natural nivelamento do ordenamento jurídico brasileiro aos Tratados Internacionais e, ainda:
a) juízes passaram a ter um contato mais direto e efetivo com os detidos, aumentando a precisão nas decisões judiciais. Com a presença de familiares e uma equipe multidisciplinar, e após inquirir o detido, os juízes obtêm mais elementos para decidir sobre medidas alternativas à prisão;
b) maior proteção à integridade física e mental dos detidos. As audiências imediatas permitem que o juiz detecte possíveis sinais de tortura e tome as ações cabíveis, preservando os direitos humanos;
c) as audiências permitiram identificar outras violações de direitos fundamentais, como o uso indevido de algemas e condições inadequadas de detenção.
A viabilidade e compatibilidade da rede de proteção de direitos humanos, em especial a custódia, com o sistema de segurança pública, estão embasadas no fato de que após a implantação das custódias não houve aumento da criminalidade, não havendo qualquer ligação da concessão das liberdades em audiências de custódia com incrementos de taxas de crimes.
Portanto, não se pode invocar a ideologia da defesa social, ideologia comum à escola criminológica clássica e escola positiva, porque a inserção das audiências de custódia no direito brasileiro não ocasionou qualquer majoração na ofensa aos bens jurídicos protegidos pelo direito penal.
Políticos que buscam restringir audiências de custódia, alegando riscos à segurança pública, como visto no caso do governador de São Paulo, carecem de suporte científico em suas afirmações. Esta postura pode refletir uma falta de compreensão sobre o sistema judiciário ou, possivelmente, ser uma estratégia para desviar a atenção da falta de políticas criminais eficazes no combate à criminalidade.
Como ilustração, considerem-se os casos de homicídios dolosos e roubos de veículos, que causam grande inquietação na sociedade. Essas situações fornecem uma clara oportunidade de entender melhor a questão.
Estes tipos de crimes não apenas perturbam significativamente a ordem pública, mas também lançam luz sobre a eficácia das medidas de segurança e garantias constitucionais. Eles ressaltam a necessidade de respostas judiciais e policiais eficientes, ao mesmo tempo em que refletem as expectativas e preocupações da população em relação à segurança pública.
As audiências de custódia iniciaram-se no Brasil em 2014 e, até 2023, foram 1.483.344 presos apresentados a um juiz, havendo liberdade imediata decretada de 600.000 presos, conforme o Sistac do CNJ – Conselho Nacional de Justiça[2].
De acordo com estudos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentados nos Anuários, observa-se que no período de 2011 a 2014, antes da implementação das audiências de custódia no Brasil, a média anual de Mortes Violentas Intencionais (MVI) no país foi de 54.372. Após a adoção dessas audiências, até o ano de 2022, a média anual desses crimes manteve-se praticamente estável, registrando 54.459.
Similarmente, no que tange aos crimes de roubo de veículos, a média anual entre 2011 e 2014 foi de 216.673, enquanto que, após a implementação das audiências de custódia, essa média até 2022 foi ligeiramente reduzida para 208.202, indicando uma taxa muito próxima à anterior[1]. Tampouco não houve alterações importantes com relação às taxas de outros delitos.
Portanto, responde-se objetivamente à pergunta inicial: a observância de garantias constitucionais e disposições de tratados internacionais de direitos humanos coexistem perfeitamente com o controle da criminalidade e, citando aqui as audiências de custódia – no senso comum “prende e solta”, não existem provas que demonstram uma correlação direta das solturas em audiências de custódia com o aumento das taxas de criminalidade.
Mesmo imaginando que a hipótese do ciclo “prende e solta” das audiências de custódia pudesse influenciar adversamente as taxas de criminalidade, a adesão aos princípios da Constituição e dos Tratados Internacionais permanece como um imperativo. Isso seria um pequeno preço a pagar para a manutenção de um Estado Democrático de Direito, salvo para quem não deseja esse tipo de organização estatal, optando por ceder suas liberdades e garantias civis a algum tipo de segurança prometida por absolutistas.
De outro lado, culpar o juiz pelo ciclo de “prende e solta” é fake news. Juízes são garantes do ordenamento jurídico e não agentes de segurança pública, e atuam rigorosamente de acordo com a Constituição e, em casos de desvio ou erro, suas decisões são revisadas por instâncias superiores como os Tribunais de Justiça, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
Se houver críticas a serem feitas pelos “haters” de plantão, estas seriam mais apropriadamente direcionadas ao Poder Legislativo ou à própria polícia, especialmente em situações onde a investigação do crime se limita ao ato do flagrante, sem ir além.
É indiscutível que a dinâmica de “prender e soltar” está ligada a questões legais e investigativas que vinculam o juiz. Por outro lado, embora a gênese do crime seja um assunto complexo e envolva múltiplas disciplinas, a libertação sob custódia ou a percepção de reincidência que isso pode gerar causa espanto em alguns.
Contudo, o sentimento de segurança – uma questão psicológica – não deve desviar para desejos de vingança ou justiça pelas próprias mãos. A verdadeira sensação de segurança deve emanar da redução de delitos contra os membros da sociedade, como evitar o roubo de carros ou a violação da integridade física, e não deve ser alimentada pela ideia de superlotar prisões ou maltratar os detentos.
Importante destacar que o aumento no número de prisões provisórias, a maior rigidez nas abordagens policiais (na linguagem policial “saturação”), o acréscimo de juízes e a intensificação das penas, etc. resultam primariamente em um crescimento da população carcerária, sem necessariamente reduzir a criminalidade, sem haver políticas criminais sérias a serem adotadas pelos gestores públicos. Isso se deve à complexidade das causas dos delitos, dos processos de criminalização e formação do delinquente e à vasta gama de fatores que os influenciam.
De fato, excesso de prisões pode inadvertidamente promover o desenvolvimento de carreiras criminosas, potencialmente levando a um aumento da criminalidade, em um paradoxo contrário ao esperado. Este fenômeno está alinhado com os princípios da Teoria do Etiquetamento (“Labelling Approach”), que sugere que o rótulo de “criminoso” pode reforçar comportamentos desviantes.
De outro lado, a visão fake news de que a soltura rápida de suspeitos é uma falha do sistema judiciário pode ser influenciada pelo que se denomina populismo penal, uma abordagem que explora o descontentamento público para fins políticos ou midiáticos, o que não raro acontece no Brasil e serve de esteio de captação de votos para uma gama de políticos.
Este populismo frequentemente simplifica a complexidade das questões jurídicas e penais, criando uma narrativa de fake news que distorce a realidade dos procedimentos judiciais em absolutamente nada contribuindo para a segurança pública, ao revés.
Marcos Faleiros da Silva é juiz da 11ª Vara Criminal de Cuiabá.