Líder religiosa fazia previsões, fundou comunidade e irritou Vargas

Nos interiores do pantanal mato-grossense, uma dona de casa ganhou fama e atraiu seguidores ao compartilhar visões de uma santa e por curar pessoas enfermas da região. Era o início da década de 1930 e o nome dela era Laurinda Lacerda Cintra, mais conhecida como Doninha.

Maria da Verdade que falava aos ouvidos de Doninha sobre as curas de homeopatia, de plantas medicinais e quais as orações que ela tinha que fazer

 

Doninha nasceu em março de 1904 em Poconé, sendo a nona filha de um casal humilde de agricultores pantaneiros. Ela já vivia com o marido e era mãe de dois filhos quando começou a receber visões da santa “Maria Da Verdade”, que, posteriormente, passou a se chamar “Jesus Maria José”.

 

“E ela se reverenciava a Maria como a ‘Mulher da Verdade’, ‘Santa Maria da Verdade’. E era ela que falava aos ouvidos de Doninha sobre as curas de homeopatia, de plantas medicinais e quais as orações que ela tinha que fazer para as pessoas serem curadas”, explicou Walney de Souza Rosa, jornalista e escritor que escreveu um livro contando a história de vida da poconeana.

 

“Ela oferecia atendimento, rezava, o que seria a ‘benzeção’ e falava para tomar determinados chás, que ofereciam a cura dessas pessoas”, acrescentou.

 

Quando começou a ter as visões e a realizar curas na comunidade Tanque Novo, onde morava, ela começou a atrair uma romaria de fiéis para o local, muito dos quais passaram até a viver ali, formando um pequeno e crescente arraial.

 

“Isso se espalhou por outras cidades, outros sertões, deixando ela famosa. Era conhecida como a ‘Doninha do Tanque Novo’. Mas depois da prisão, ela se mudou para a região do Caeté [na zona rural de Poconé]. Daí ficou ‘Doninha do Caeté’ também”, contou Walney.

 

O jornalista estipula que mais de mil pessoas viviam no arraial do Tanque Novo antes de ele ser invadido por tropas do Governo.

 

A comunidade do Tanque Novo se mantinha com doações e apoio de fiéis, fazendeiros e políticos da região, que viam no crescente arraial uma espécie de “curral eleitoral”.

 

Quem viveu essa época e até frequentou a comunidade é Benedito Silvério Pereira, ou seo Dito, benzedor poconeano de 98 anos, morador do bairro Novo Terceiro, em Cuiabá.

 

“Lá era um sítio, estive lá quando criança, com meu pai. Já estava virando uma cidade, já tinha muita gente [no arraial]”, lembrou ele.

 

Não demorou muito para que o Tanque Novo começasse a atrair atenções e a ganhar protagonismo político, o que viria a definir o seu breve futuro. Há quem diga até que a história se assemelha a de Canudos, arraial comandado pelo líder religioso Antônio Conselheiro no interior da Bahia, destruído pelas forças do governo brasileiro em 1897.

Andrelina Braz/MidiaNews

Seu Dito Benzedor

Benedito Pereira, o Seo Dito Benzedor

 

Vida política agitada

 

O conturbado cenário da política nacional dos anos de 1930 se refletia também na política mato-grossense. O estado e os municípios eram governados por indicados do presidente Getúlio Vargas, que administrava o país em um governo provisório após aplicar um golpe depois de perder as eleições daquele ano.

 

Em Poconé, o prefeito Coronel Manuel Nunes Rondon, conhecido por Bem Rondon, foi afastado em 1932 e em seu lugar assumiu Antônio Avelino Correia da Costa, o ‘Nhô Tico’.

 

Bem Rondon foi um grande colaborador do Tanque Novo, doando mantimentos e recursos ao arraial, que cada vez mais aumentava de fama e tamanho, além de resguardo político.

 

Entretanto, seu sucessor não gostava do arraial e tinha medo do capital político que Bem Rondon tinha entre os habitantes do local. Então, este começou uma perseguição a Doninha e seus seguidores.

 

“’Nhô Tico’ não gostava do Ben Rondon e começou a ter um ciúme do Tanque Novo, achando que o Ben Rondon poderia voltar a ser prefeito outra vez com o apoio da comunidade”, contou o engenheiro agrônomo e historiador Francisco Campos.

 

O historiador ressaltou que como Bem Rondon ajudava com mantimentos ao Tanque Novo, o prefeito na época via seu mandato ameaçado.

 

Nhô Tico fazia intrigas e acusava o arraial de anarquia, alegando também que a líder religiosa fazia rituais de bruxaria. Doninha, porém, proibia terminantemente aos habitantes do lugar a ingestão de bebidas alcoólicas ou a prática de jogos de azar.

Na hora que a comitiva do prefeito chegou, atiraram na cabeça do motorista [sobrinho do prefeito]

 

“O prefeito foi tomar satisfação das coisas que estavam acontecendo lá e o pessoal aproveitou e matou o sobrinho dele, tendo o próprio levado um tiro de raspão no nariz. Aí começou toda a intriga que envolveu o Governo Estadual e até o Federal, que acabou mandando tropas para lá”, relatou o historiador.

 

“Ela [Doninha] subiu num banco falando: ‘Meu povo, eu não quero que vocês façam nada, mas vou ser presa daqui a pouco’. Porém três moradores discordaram e falaram que iam agir, indo para casa e pegando espingardas. Na hora que a comitiva do prefeito chegou, atiraram na cabeça do motorista [sobrinho do prefeito] e deram um tiro de raspão no nariz do Nhô Tico”, contou seo Dito.

 

Além disso, outro setor importante não via a líder religiosa e a comunidade com bons olhos. A Igreja Católica não a reconhecia e sua fama incomodava sacerdotes em Mato Grosso.

 

“Os padres, na época, não gostavam muito de Doninha. Tudo que ela fazia, os padres tentavam desmascarar. Eles ‘metiam o pau’ nela. Mas em Poconé uma grande parte da população gostava dela”, explicou o historiador.

 

Fim do Tanque Novo

 

Doninha foi presa por duas vezes, a primeira provavelmente ainda em 1932 quando passou quase 90 dias na prisão. A segunda em 1933, quando forças policiais chegaram ao Tanque Novo para destruir o local e a prenderam, desta vez ficando na cadeia até seu julgamento, em agosto de 1934, quando foi inocentada.

 

“Foi a primeira vez no Brasil que um lugar foi invadido e teve a igreja bombardeada por canhão. Acabaram com a igreja e acabaram com todo o Tanque Novo”, disse o historiador.

 

Segundo Walney, mais de cem homens participaram da invasão ao local e utilizaram fuzis e até dinamites, que destruíram a igreja da comunidade, de Santa Maria da Verdade. A maioria dos habitantes já havia fugido e os que se rebelaram eram espancados. No episódio, dois foram assassinados.

 

Seo Dito conta que estava no arraial no dia da prisão de Doninha. “Eu estava lá no dia que ela foi presa. Ela mandou eu e meu pai embora, porque sabia que iria ser presa no dia. Aí, saímos, eu na garupa do meu pai. Quando chegamos num lugar chamado Santa Fé, encontramos com o carro da polícia indo”, relatou.

 

O fuzil enfrentou a fé daqueles fiéis desnecessariamente. Eram pessoas pobres, humildes, que não tinham para onde ir

 

Autor do livro “A Fé e o Fuzil”, Walney explicou que o nome se deve à destruição que ele considera criminosa, utilizando armas de fogo, de uma comunidade que surgiu pela fé.

 

“O fuzil enfrentou a fé daqueles fiéis desnecessariamente. Eram pessoas pobres, humildes, que não tinham para onde ir e que começaram a ficar naquele arraial que foi destruído devido a uma ordem nacional. Foi criminosa a situação”.

 

Previsões certeiras

 

Talvez a mais famosa previsão da poconeana foi a morte do político mato-grossense Filinto Muller. Ele foi chefe da polícia na era Vargas e por diversas vezes foi acusado de promover prisões arbitrárias e a tortura de prisioneiros.

 

Giordano Tomaselli/MidiaNews

Doninha e a Santa

Imagem de Doninha e da Santa, no altar de Seu Dito

 

De acordo com Walney e Francisco, Doninha, após ter sido presa, foi torturada por Muller e acabou prevendo de que forma o algoz morreria.

 

De acordo com o jornalista, Doninha estava sendo torturada pelo chefe da polícia, que esbravejou que “Bruxas como ela deveriam ser queimadas vivas”.

 

A religiosa teria respondido com voz bastante fraca: “Não sou bruxa, senhor doutor, mas a Mulher da Verdade mandou dizer que não sou eu quem vai morrer queimada. Mas Deus já terá me levado deste mundo quando o senhor for envolvido pelo fogo ainda em vida”.

 

Doninha faleceu em 26 de junho de 1973, aos 69 anos de idade. Filinto Muller, na época senador, morreu em 11 de julho do mesmo ano, carbonizado, após a aeronave em que estava ser atingida por um incêndio antes de aterrissar em Paris, matando 123 pessoas.

 

Outros casos são a chegada do aparelho de TV e os incêndios do Pantanal, em 2019 e 2020.

 

“Ela previu o início da televisão. Ainda era o início dos rádios naquele período, década de 1930, e ela falou que as pessoas iriam ficar mais surpresas quando vissem a imagem por uma caixa, como se fosse de rádio”, relatou o jornalista.

 

“Outra previsão foi a queima do Pantanal, que aconteceu em 2019 e 2020. Ela teria dito que antes do vigésimo ano do novo milênio, as águas do Pantanal se secariam e o Pantanal iria arder em chamas”, encerrou.

 

Reprodução

Especial Doninha do Caeté

Tropas que invadiram e destruíram o Tanque Novo, onde Doninha morava

A fé continua

  

No ano em que se completam 120 anos de seu nascimento e mesmo após 50 anos da morte, Doninha continua a despertar a curiosidade e o interesse de quem ouve falar sobre sua história e ainda possui fiéis Pantanal a fora.

 

“Visitantes e crentes ainda visitam a região do Caeté. O atual proprietário da fazenda autoriza os funcionários receberem a todos que desejam desenvolver suas crenças, rezar e fazer pedidos onde se localizava o Tanque Novo. Eles até levam para suas casas a água do poço, que acreditam ser milagrosa”, disse Walney.

 

Ele contou que quer levar a cura de uma fiel, ainda viva, por intermédio de Doninha até o conhecimento da Diocese de São Luiz de Cáceres, para tentar dar início a um processo de beatificação da líder religiosa. O processo, porém, é longo e precisa de três provas concretas de um milagre.

 

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