“Enquanto não acordarmos do sono profundo, tendência é piorar”

O mês de abril de 2024 ficará marcado por um crime bárbaro na Grande Cuiabá. Três motoristas de aplicativos foram brutalmente assassinados após saírem para trabalhar.

 

Entre os responsáveis, dois menores de idade que estão internados, mas não por muito tempo, conforme determina o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

O caso gerou revolta e trouxe à tona uma discussão antiga: a redução da maioridade penal. Mas será que a mudança na legislação resolveria o problema? Para o procurador de Justiça Paulo Prado, titular da Procuradoria Especializada da Criança e do Adolescente, não.

 

Em entrevista ao MidiaNews, ele lamentou o aumento da criminalidade praticada por adolescentes no País e atribuiu o fato à falta de investimentos em direitos fundamentais como Educação, Saúde, Segurança e Cultura. Ele chamou atenção para a “sedução” das facções criminosas enquanto políticos loteiam emendas de acordo com seus interesses. 

 

“Enquanto não acordarmos e continuarmos nesse sono profundo, continuarmos loteando emendas de acordo com o interesse político e partidário deste ou aquele deputado, vai só piorar”, afirmou. 

 

Dizer que esses garotos não têm recuperação, na minha opinião é muito prematuro

Na entrevista, Paulo Prado ainda comentou sobre seus 35 anos de Ministério Público, descartou disputar novamente o cargo de procurador-geral de Justiça e enfatizou o trabalho em projetos sociais. 

 

Confira os principais trechos da entrevista:

 

MidiaNews – Recentemente tivemos a apreensão de dois adolescentes que mataram três motoristas de aplicativo em Várzea Grande. Um delegado que investiga o caso afirmou que não acredita que eles tenham recuperação. Como o senhor vê essa situação?

 

Paulo Prado – É com tristeza que a gente percebe, infelizmente, que está aumentando o número de atos infracionais praticado por adolescentes no Brasil. Mas por que isso está acontecendo? Em primeiro lugar, a Constituição Federal diz no artigo 227 que é obrigação da família, da sociedade e do poder público, assegurar com absoluta prioridade à efetivação dos direitos fundamentais da criança e adolescente. Ou seja: Educação, Saúde, cultura, alimentação. E esses direitos não estão sendo garantidos com prioridade absoluta.

 

É horrível a gente ver um adolescente tirando a vida de um ser humano. Ninguém pode em sã consciência admitir algo dessa natureza. Agora, dizer que esses garotos não têm recuperação, na minha opinião é muito prematuro. Eles precisam passar por uma avaliação psicossocial para saber se são psicopatas, se têm alguma esquizofrenia, se possuem alguma patologia.

 

MidiaNews – O senhor trabalha na Vara da Infância há anos. Já presenciou a recuperação de um adolescente infrator?

 

Paulo Prado – Sim. Trabalhei há muitos anos com a delegada Célia Torrezan (já falecida), que possuía um adolescente infrator com mais de 20 passagens. Esse rapaz hoje é um pastor, prega nos países da Europa, fala três idiomas. 

 

Conheci também outro adolescente que praticou algo muito grave e hoje está cursando Medicina. Então, dizer que é irrecuperável, poucos dias após [os fatos], sem uma avaliação psiquiátrica, psicossocial, um acompanhamento mais aprofundado, é muito prematuro.

 

MidiaNews – Ainda sobre esse episódio, o deputado estadual Júlio Campos chegou afirmar que o Brasil deveria reduzir a maioridade penal e implantar a pena de morte, inclusive para adolescentes. Como enxerga essa proposta?

 

Paulo Prado – Eu enxergo com muita tristeza um ex-governador, ex-senador comentar algo dessa natureza. Para reduzir a maioridade penal é preciso alterar a Constituição Federal. Não é nem o Estatuto da Criança e Adolescente. E ouso dizer que é impossível, porque trata-se de cláusula pétrea.

 

O que temos que fazer é saber quantos adolescentes realmente praticam atos infracionais de natureza grave. E falo para você que não chega a 10% os crimes de natureza grave praticados em Mato Grosso cujo autor seja adolescente. A grande maioria, 80%, são maiores de idade.

 

Agora pergunto: Eduardo Cunha [ex-deputado federal] está preso ou está solto? Pezão [ex-governador do Rio de Janeiro], está preso ou solto? Sérgio Cabral [ex-governador do RJ], com 400 anos de condenação, está preso ou solto? Esses sim, que desviaram recursos públicos, que desviaram dinheiro do povo, merecem anos e anos de cadeia.

 

Esses que não permitiram que o recurso público chegasse às famílias, às mulheres, ao combate à violência contra criança e adolescente, merecem prisão perpétua.

 

Reprodução/MPMT

Paulo Prado

“Sou radicalmente contra a pena de morte para quem quer que seja”

Sou radicalmente contra a pena de morte para quem quer que seja, porque a pena de morte significa dizer que o Estado faliu. Que o Estado não conseguiu produzir maneiras e formas de evitar o aumento da criminalidade. Não posso ser a favor, como membro do Ministério Público, pago pela sociedade para defender o cidadão, seja ele quem for apoiar a pena de morte. Se ele praticou algo horrendo, tem que ficar na cadeia. Perdoe-me quem pensa diferente.

 

MidiaNews – Acha que há uma inversão dos valores?

 

Paulo Prado – Temos que analisar da seguinte maneira: vai resolver reduzir a maioridade penal? Se vai resolver, então não reduz para 16 anos, reduz para 12, para 10, daqui a pouco coloca um recém-nascido. Por que você acha que um garoto de 10 anos, de 12 anos, não tem consciência da gravidade do ato que ele pratica?

 

Agora, por que ele pratica esse ato?  A maioria desses garotos e meninas são de famílias desajustadas, conflituosas, onde a violência doméstica e familiar prevalece. Existe uma dependência psicológica, física, material e econômica nesses casos. O mundo do crime sabe disso. E o que as facções criminosas fazem? Oferecem uma arma, dinheiro e coloca-os para comandar um setor do mundo do crime.

 

Mas esses problemas também chegam à classe média. Tem muito adolescente da classe média que está matando por adrenalina, prazer, emoção. Isso é perigosíssimo.

 

A gente precisa, todos nós, a área social, área médica, segurança pública, Judiciário, Ministério Público, sentarmos e avaliarmos qual sociedade queremos e traçar um grande plano para a redução da violência como um todo no País.

 

MidiaNews – Como disse, o crime organizado está aliciando menores com possibilidade de riqueza e vida fácil. Em que momento acha que se perdeu o valor de estudar e trabalhar duro?

 

Paulo Prado – Nós perdemos esse trem da história no instante que deixou de ser prioridade absoluta a família, investir em grandes projetos e políticas nos bairros, ter professores bem remunerados, bem capacitados, bem treinados, ter um SUS de atendimento amplo, uma polícia que realmente esteja presente em todos os municípios de forma capacitada, estruturada, recebendo bem. Enquanto não acordarmos e continuarmos nesse sono profundo, continuarmos loteando emendas de acordo com o interesse político e partidário deste ou aquele deputado, vai só piorar.

 

Vai resolver reduzir a maioridade penal? Se vai resolver, então não reduz para 16 anos, reduz para 12, para 10, daqui a pouco coloca um recém-nascido

O Estatuto da Criança e Adolescente prevê no seu artigo 4º parágrafo único, letra D, a destinação privilegiada de recursos. Se o Estado tiver que criar uma delegacia ambiental ou uma delegacia de proteção aos crimes contra a criança e adolescente, a prioridade é a criança e adolescente. Entre o Ministério Público implantar uma promotoria de Justiça de defesa do consumidor ou defesa dos direitos da criança adolescente, a prioridade é da criança. O Poder Judiciário a mesma coisa…

 

MidiaNews –  Recentemente a Polícia Civil descobriu que um membro de uma facção criminosa, preso em uma operação no mês passado, estava construindo uma arena esportiva em Cuiabá. Qual o risco que a sociedade corre diante desta realidade?

 

Paulo Prado – Eles são inteligentes. O que eles percebem? Eu estou numa comunidade carente. O que falta na comunidade? Tem algum lazer? Algum centro esportivo? Centro de ginástica? Cinema? Não. Então, investem e conquistam esses moradores. É assim que começa a sedução do crime. E aí, quando eles têm a comunidade do lado deles, preservam essa comunidade, que passam a trabalhar para eles.

 

MidiaNews – Acha que a sociedade brasileira está perdendo a guerra contra as facções criminosas?

 

Paulo Prado –  Eu não sei se é só a brasileira. Olha o mundo como está. A Rússia resolveu matar gente ao invés de sentar para discutir se a Ucrânia é deles, se não é deles. Israel e Palestina também não conseguem sentar para conversar. Estão morrendo milhares de pessoas. É o poder, não importa como. Isso é um reflexo do desequilíbrio mundial.

 

MidiaNews – Uma das propostas defendidas para combater a criminalidade entre jovens e acabar com a ideia de maioridade penal é avaliar caso a caso o grau de periculosidade daquele menor delinquente. Como avalia essa proposta?

 

Paulo Prado – Não adianta a gente mexer no Estatuto sem mexer na estrutura social prioritária do país. Querem fazer alterações? Vamos fazer alterações, mas não vai resolver a situação. Vejo que a redução da maioridade penal não tem nada a ver com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Quem define a maioridade penal é a Constituição Federal. Quer aumentar o prazo da internação? Tudo bem. Se os políticos entenderem que é por aí… Mas volto a perguntar: Qual adulto de alta repercussão, como aqueles que citei lá atrás, estão na cadeia?

 

MidiaNews – Defende uma mudança total?

 

Paulo Prado – De paradigma. Nós temos, com humildade, e me incluo nisso, pararmos, nos reunirmos, buscarmos informações precisas e retomarmos essa discussão com mais racionalidade e equilíbrio.

 

MidiaNews – O senhor está fazendo 35 anos de Ministério Público e já atuou em importantes promotorias, foi procurador-geral de Justiça. Há algo que ainda sonha em fazer dentro do MPE?

 

Reprodução/MPMT

Paulo Prado

“Meu grande sonho é, antes de morrer, deixar uma contribuição mínima que seja de esperança para tantas meninas e meninos de Mato Grosso”

Paulo Prado – Pergunta difícil. O meu grande sonho é ser útil. Meu grande sonho é servir. Meu grande sonho é um dia acordar e não ver tanta violência assim contra criança e adolescente.

 

Meu grande sonho é, antes de morrer, deixar uma contribuição mínima que seja de esperança para tantas meninas e meninos de Mato Grosso. Que o meu trabalho realmente toque o coração das pessoas e seja útil e tenha alguma importância na mudança de hábitos, de costumes e de ações das pessoas.

 

MidiaNews – Ainda pretende voltar a disputar a chefia do MPE?

 

Paulo Prado – Eu já fui quatro vezes. Já estou com 61 anos de idade, 35 anos de instituição, a gente tem que saber a hora de parar. Continuo como procurador, continuo no Conselho Superior do Ministério Público, apoiando quem entra, mas vamos continuar com a renovação.

 

MidiaNews – O senhor coordena o projeto Prevenção Começa na Escola. Como funciona esse projeto?

 

Paulo Prado – Esse projeto existe há seis anos. Já foi apresentado em mais de 60 cidades, inúmeras escolas. Se qualquer um de nós aqui for conversar com 100 crianças, 200 crianças, ninguém vai prestar atenção, mas o teatro fascina a meninada.

 

A peça teatral conta com três artistas, uma menina que foi vítima de abuso sexual, o agressor e o amigo imaginário que ela conversa e desabafa. A peça  discute bullying, com perfil de racismo, e o abuso sexual. Tem muita criança que não sabe que está sendo abusada. E, infelizmente, na grande maioria, o abuso acontece por pais, padrastos, tios, avôs, vizinhos, pessoas próximas. Por isso o nome: prevenção começa na escola. 

  

Esse projeto tem permitido, primeiro, prevenir, explicar. Se estiver acontecendo isso, no início, evite. Conte com alguém. E se você está sofrendo, denuncie e o Ministério Público está com as portas abertas. Está sempre do lado das vítimas.

 



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