“As mulheres vítimas de estupro serão chamadas de criminosas”

Membro do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, ligado à Secretaria de Estado de Assistência Social, a procuradora do Estado Gláucia Amaral afirmou que a PL 1904, que equipara o aborto acima de 22 semanas ao crime de homicídio mesmo em caso de estupro, é mais um meio de revitimizar a vítima.

 

O projeto – proposto pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL/RJ) – prevê às mulheres pena máxima de 20 anos. O Código Penal, no entanto, estabelece que estuprador pode pegar pena de até 10 anos. O aborto é considerado legal no Brasil até 22 semanas de gestação nos casos de estupro, anencefalia do feto e risco de vida à mãe.

Não existe nenhuma discussão sobre política pública de saúde. Não existe nenhuma discussão sobre combate ao estupro. Não existe nenhuma discussão sobre saúde da mulher

 

“Estamos falando da mulher responder um processo criminal, ser chamada de criminosa depois de ser vítima de estupro. São meses de diferença do estupro para dar início a todo esse processo criminal e, muitas vezes, esse estuprador ainda vai estar livre”, afirmou ela em entrevista ao MidiaNews.

 

Para Gláucia, essa investida contra o direito ao aborto legal se deve a interesses políticos e é um retrocesso.

 

“Não existe nenhuma discussão sobre política pública de saúde. Não existe nenhuma discussão sobre combate ao estupro. Não existe nenhuma discussão sobre saúde da mulher. Assina-se o projeto para a população que é majoritariamente conservadora”.

 

A procuradora falou também sobre as falhas técnicas que o projeto apresenta e as consequências de uma eventual aprovação.

 

Confira os principais trechos da entrevista:

 

MidiaNews – Para uma mulher que atua na defesa dos direitos das mulheres, como avalia esse projeto que tramita na Câmara Federal que criminaliza o aborto a partir da 22ª semana de gestação, mesmo em caso de estupro?

 

Gláucia Amaral – Estamos falando de normas penais e o projeto tem como primeiro defeito o fato de ser mal escrito e se inserir de forma pouco técnica no sistema penal. Ele equiparar dois crimes que são considerados diferentes em qualquer país do mundo pelos penalistas. Nos tratados internacionais que assinamos não existe essa equiparação.

 

Em primeiríssimo lugar entendo que houve um erro de técnica quando se faz isso. Em segundo, quando se disciplina uma pena se descreve uma conduta e se disciplina uma pena, se você está fazendo isso, não precisa equiparar a nada. Em terceiro lugar, quem estuda Direito Penal vê equiparação como algo negativo e proibido. O Direito Penal tem uma regra que diz que não se pode punir uma pessoa por analogia. Muito embora, isso estaria previsto no texto do projeto, é de má técnica, bastaria simplesmente escrever, descrever a conduta e estipular a pena.  

A vida de uma mulher estuprada, a vida de uma criança estuprada, muda completamente. Há casos de suicídio, de divórcio, maridos que não aceitam, a vergonha na família, a vergonha na sociedade, ela fica estigmatizada e ainda vai responder a um processo criminal?

 

É muito cruel que um país pense em criminalizar e punir uma vítima de estupro, ou uma mulher em risco de vida. Não tenho conhecimento de nenhum país que pense em processar criminalmente uma vítima de estupro.

 

MidiaNews – Avalia como um retrocesso?

 

Gláucia Amaral – Um retrocesso do ponto de vista jurídico. Quando em 1940 se disciplinou as hipóteses de exceção, hipóteses não tinham limitação. Então, quando depois se limita, como estamos falando de direitos humanos e, especialmente, quando se prevê a punição criminal por algo que era permitido pelo respeito à dignidade humana, à condição da vítima, à vontade e autonomia da mulher que está em risco de vida, a gente tem claramente uma norma que era mais benéfica e se torna menos benéfica. Então, ela retroage. Em termos de direitos humanos existe o princípio do não retrocesso.

 

MidiaNews – É um meio de revitimizar essa vítima?

 

Gláucia Amaral – Sim, com certeza. O Brasil tem um problema e o Estado de Mato Grosso investe muito para corrigi-lo: a revitimização da mulher que sofre violência. O tratamento na delegacia, a ausência de conseguir fazer o exame de corpo de delito imediatamente, no caso de estupro, os hospitais que se recusam a aplicar a profilaxia. No caso, estamos falando da mulher responder um processo criminal, ser chamada de criminosa depois de ser vítima de estupro. São meses de diferença do estupro para dar início a todo esse processo criminal e, muitas vezes, esse estuprador ainda vai estar livre.

 

Eu vi várias pessoas chorando ao ler esse projeto. A vida de uma mulher estuprada, a vida de uma criança estuprada, muda completamente. Há casos de suicídio, de divórcio, maridos que não aceitam, a vergonha na família, a vergonha na sociedade, ela fica estigmatizada e ainda vai responder a um processo criminal? Essa mulher já foi punida. Ela já sofre. Infelizmente, essa proposta desconsidera a mulher como ser humano.

 

MidiaNews – Quais as consequências de uma eventual aprovação deste projeto?

 

Gláucia Amaral – É difícil prever as consequências, mas me parece que, especialmente dada a repercussão na sociedade, o Poder Judiciário terá um aumento dos processos. Porque além de processar o estuprador, terá que processar a vítima. Segundo, temos um problema social, porque as vítimas de estupro já têm medo de denunciar. Provavelmente, elas vão cair cada vez mais na tentativa de aborto clandestino para não correr o risco de serem apenadas. É um risco e é um problema para o sistema de saúde, que hoje já recebe mulheres que tentaram fazer abortos clandestinos.

 

Esse projeto de lei vai, na realidade, fazer com que essas mulheres se sintam cada vez menos amparadas pela sociedade. A aprovação de um projeto como esse tem consequências até para o comércio exterior do Brasil. Quando a gente fala de uma questão como o aborto, não o associamos à exportação, mas cansamos de ver embargos de países europeus, especialmente, aqueles países que tem regiões de trabalho escravo, por exemplo. A ONU deu o prazo até 2030 para a erradicação ou modificação de determinadas condições e a situação da mulher foi incluída. O Brasil está batendo recordes. Isso tem efeitos para o Brasil no exterior, para as relações comerciais brasileiras.

 

MidiaNews – O Brasil sempre foi um país conservador, majoritariamente contrário ao aborto, tanto que nenhum candidato à presidência, nem os progressistas, o defende. Apesar disso, nunca se avançou tanto contra o aborto legal como agora. A que deve isso?

 

Gláucia Amaral – Interesses políticos. Não existe nenhuma discussão sobre política pública de saúde. Não existe nenhuma discussão sobre combate ao estupro. Não existe nenhuma discussão sobre saúde da mulher. Assina-se o projeto para a população que é majoritariamente conservadora.

É natural da política que se procure projetos populares, não é algo extraordinário. E essa é uma pauta fácil para ganhar votos em um determinado nicho eleitoral

 

Muito embora, eu não tenha visto nessa discussão ninguém falando contra o aborto da mulher vítima de estupro, muito embora muitos tenham aderido à tese das 22 semanas, parece-me que, concretamente, a vítima tomar profilaxia e fazer o aborto em si, em caso de estupro, não é algo que a sociedade brasileira reprova. Até porque se hoje somos conservadores, em 1940 éramos muito mais. Vejo que com o advento das redes sociais o voto da polêmica é muito fácil. Para os dois lados. Dizer ‘sou contra o aborto’ imediatamente atrai um determinado público. Eu sou contra o aborto, mas sou contra criminalizar a mulher.

 

É natural da política que se procure projetos populares, não é algo extraordinário. E essa é uma pauta fácil para ganhar votos em um determinado nicho eleitoral. Porque todo ser humano se comove com a vida, ser mãe é sonho de muitas mulheres, ser pai é sonho de muitos homens. A ideia do aborto não é algo bom, significa uma falência da sociedade. Quando falamos de estupro temos um índice de 60% de vítimas crianças. Estamos falando que a pedofilia está grassando no Brasil. E temos também que fazer um recorte de classe, as classes médias e altas utilizam serviços clandestinos, porém privados de saúda; quem se utiliza do SUS é a classe baixa.

 

MidiaNews – Há políticos que querem aparentar moderação dizendo que permanecerão contra a proposta enquanto não houver um endurecimento nas penas para o estuprador. Ou seja: acham que a vítima de estupro pode ser punida sim caso faça o aborto. Como vê esse tipo de posicionamento?

 

Gláucia Amaral – Que na realidade eles são a favor, mas estão com receio da opinião pública. Aí o eleitor tem que estar atento e se em algum momento o projeto passar, o que duvido, teremos a oportunidade de saber quem são os parlamentares que votaram a favor.

 

MidiaNews – Apesar das reações contrárias da maioria, há muita gente que ainda defende o projeto. A senhora atribui isso à ignorância, machismo ou ao fundamentalismo religioso?

 

Gláucia Amaral – É difícil determinar. O que podemos dizer é que de fato a sociedade brasileira tem uma raiz machista. Fomos educados criando aquele ‘papel clássico’ de homem e mulher que, na prática, nunca existiu. Esse pensamento tem dois códigos de moral diferentes, um para a mulher e um para o homem. É aquela expressão antiga: ‘Prendam suas cabritas que o meu bode está solto’. Isso significa que o homem não é responsável e, sim, a mulher.

 

E se você olhar a raiz desse projeto e dessa discussão, pouco se fala dos estupradores. Não podemos negar essa raiz cultural machista.

 

MidiaNews – O autor do projeto, deputado Sóstenes Cavalcanti, fez um post nesta semana dizendo que bebês abortados seriam usados pela indústria de cosméticos. A senhora viu isso?

 

Gláucia Amaral – Eu não vi o comentário, mas vi que esclareceram que não existe esse uso. Temos que ponderar se ele sabia que era uma fake news ou se acreditava que era verdade? Não conheço o parlamentar em si, mas conheço o nosso sistema democrático, conheço as obrigações que todos temos, especialmente os parlamentares. Sabemos a estrutura que procuramos dar para o Congresso Nacional e para as Assembleias. Eles podem convocar consultores para tratar de um tema assim, poderia ter feito uma consulta aos órgãos oficiais, podem convocar quem quer que seja para auxiliá-los a fazer leis.

 

MidiaNews – A legislação brasileira hoje permite o aborto no caso de anencefalia, risco de vida para a mãe e estupro. Considera a legislação brasileira adequada?

 

Gláucia Amaral – Quando falamos em aborto, há posições radicais de uma ponta a outra. A legislação aprovada em 1940 foi um acordo possível numa sociedade bem mais conservadora, parece-me que ela é uma legislação razoável para todas as vertentes. Quer dizer, mulheres vítimas de estupro podem fazer o aborto, mulheres em risco de vida podem fazer o aborto. Temos que considerar que a mulher está em risco de vida naquela gestação, ela pode vir a ser mãe depois ou ela pode já ter dois filhos em casa. Como você vai obrigar ela a levar uma gestação até o final? E o risco de vida pode surgir depois das 22 semanas. Inclusive, quando falamos de crianças de 9 a 11 anos, dependendo da complexão física, passadas 22 semanas de gestação elas estarão em risco de vida, o assoalho pélvico daquela criança é destruído. É de uma desumanidade, de uma crueldade. Estamos fazendo essa discussão essencialmente no aspecto médico e técnico de medicina. A legislação que hoje existe parece-me o acordo possível nesse momento em que há uma grande parte da população que se autodeclara conservadora.

 

MidiaNews – Defende uma discussão para legalizar o aborto no Brasil em qualquer caso?

 

Gláucia Amaral – Não vejo espaço político para essa discussão neste momento. Talvez esse projeto tenha sido exatamente para fugir dessa possibilidade, apesar de que, pelo que tenho lido dos analistas que acompanham Brasília, os interesses são exclusivamente disputa de poder entre Executivo e Legislativo. Não tem realmente conexão com a questão do aborto, com a vida das mulheres, com a questão de saúde pública. É uma briga de poderes.

Digamos que ele seja aprovado pela Câmara, pelo Senado e sancionado pelo presidente. Alguém vai entrar com a ação direta de inconstitucionalidade e no Supremo não resiste

 

Mas, sim, acredito que a gente possa caminhar para essa discussão. Os países que liberaram a possibilidade de interrupção de gravidez, independente do motivo, tiveram uma queda nos abortos, porque você é obrigado a criar uma estrutura de recebimento dessa mulher. A equipe tem que ser formada por profissionais, não religiosos, nem feministas, mas profissionais que conheçam o procedimento.

 

MidiaNews – Acredita que o projeto possa ser aprovado e se torne lei?

 

Gláucia Amaral – O Conselho Federal da OAB já se pronunciou por meio de uma equipe de juristas constitucionalista dos direitos humanos, da Comissão da Mulher, da Comissão de Direito Penal, dizendo que o projeto é inconstitucional. Para se tornar lei, o projeto tem que ser aprovado no plenário da Câmara dos Deputados e no Senado, tem que ser sancionado pelo presidente da República, que já se pronunciou contra. Mas digamos que ele seja aprovado pela Câmara, pelo Senado e sancionado pelo presidente. Alguém vai entrar com a ação direta de inconstitucionalidade e no Supremo não resiste. 

 

MidiaNews – Foi um choque se deparar com um projeto como esse? 

 

Gláucia Amaral – Eu acho que todos estamos chocados e quando a gente opera na área do direito é surpreendente, porque não havia esse clamor social, nenhuma pesquisa indicando algo que fosse necessário essa intervenção.

 

MidiaNews – Mato Grosso tem quase o dobro da média nacional em casos de feminicídios e está em terceiro lugar no ranking. Ao que atribui o alto índice de mulheres mortas por menosprezo do gênero?

 

Gláucia Amaral – É cultural, temos um problema cultural no Brasil. Não existe razão para você tirar a vida de alguém, mas existem índices sobre as razões dadas pelos feminicidas. As três maiores são ‘traição’, ‘término do relacionamento’ e ‘não está cumprindo seu papel de mulher’.

 

E o que significa cada um? Na traição, há duas formas de moral, um para a mulher e outro para o homem. Muitos dizem que a mulher é louca porque chora, briga e grita. O homem mata. Não todos os homens e não todas as mulheres, não é uma generalização. Mas há uma diferença muito grande. E esse matar, antigamente, estava previsto nas ordenações Filipinas como autorização legal. Quer dizer, o homem poderia matar a mulher em caso de traição, estaria ‘lavando a honra’, tese que o Supremo Tribunal considerou inconstitucional. Isso era discutido, tolerado, definia o destino do homem que mata sua esposa em caso de traição.

 

Segunda hipótese, até recentemente, há 50 anos, tivemos o estatuto da mulher casada, que dizia que só homem poderia pedir o divórcio, poderia rejeitar a mulher, ‘devolver para a família’, essa é a expressão. Modificou-se a lei e não se trabalhou culturalmente que homens e mulheres são iguais.

 

E a terceira, ‘não está cumprindo o seu papel de mulher’, consistindo no extremo de termos cumprindo pena em Mato Grosso por feminicídio, que ocorreu no bojo de um relacionamento abusivo, porque ‘eu cheguei em casa do trabalho e o arroz estava sem sal”. Nós como conselho da mulher pedimos para a Secretaria de Cultura que fossem  incluídos nos editais de cultura temas que tratam de violência contra mulher, foi incluído na semana da escola. Eu vejo com esperança essa nova geração inadmitindo qualquer hipótese de violência, mas nós precisamos trabalhar isso nas empresas, nas escolas, no serviço público e em outros locais.

 

MidiaNews – Em 2022, das 108 mulheres assassinadas no Estado, 84 eram mulheres negras. Poderia falar um pouco sobre o perfil das vítimas em Mato Grosso?

 

Gláucia Amaral – O Brasil é um dos países que mais praticam violência contra a mulher. Mato Grosso está entre um dos Estados que mais praticam violência contra a mulher. Então, estamos em um dos piores lugares do mundo para ser mulher. O índice de feminicídio per capita é muito grande. Há uma discussão, ‘mas os homens também morrem’, sim, homens e mulheres morrem na violência urbana, nos acidentes de trânsito, os que se envolvem com o crime, mas pela condição de ser mulher, as mulheres estão mais expostas a esse índice. O feminicídio não tem classe social, a violência contra mulher também não tem, a gente vê variações de denúncias conforme a classe, mas há, infelizmente, uma exposição maior das mulheres negras à violência e ao feminicídio. Me recordou um verso ‘A carne negra é a mais barata do mercado’.

 

MidiaNews – Existe uma saída possível para esse cenário com índices tão elevados de violência contra a mulher?

 

Gláucia Amaral – Nós estamos fazendo leis e atacando no lugar errado. Evidente que nossa legislação penal precisa ser aprimorada. Acho que essa é uma discussão de toda a sociedade. Mas precisamos focar em educação e cultura. Sabe como a Austrália diminuiu grandemente os índices de estupro? Criou cursos desde o jardim de infância até as pós-graduações, obrigando também as empresas a falarem de consentimento e diminuíram os índices ao fim de alguns anos dessa implementação.   



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