Enchentes no Rio Grande do Sul atingiram áreas de 230 patrimônios tombados
Os danos causados pelas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul, devastaram cidades e tiraram mais de 600 mil pessoas de casa também evidenciam a vulnerabilidade do patrimônio histórico e arquitetônico gaúcho frente a eventos climáticos extremos.
Levantamento da Folha de S.Paulo mostra que cerca de 230 bens tombados nas esferas municipal, estadual ou federal estão localizados em áreas inundadas e foram potencialmente danificados, em maior ou menor grau.
A estimativa é baseada em mapeamento das inundações feito por pesquisadores da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em dados do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), do Iphae-RS (órgão equivalente a nível estadual) e das prefeituras de Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo, cidades afetadas da região metropolitana. O recorte contemplou dados disponibilizados pelas gestões municipais.
Órgãos públicos ainda trabalham para quantificar os danos ao patrimônio histórico e cultural do estado. Voluntários e servidores ainda estão na etapa de limpeza na maioria dos casos.
O antigo prédio dos Correios, inaugurado em 1914 em Porto Alegre, o Centro Histórico da capital, e a cidade serrana de Santa Tereza, com casas erguidas por imigrantes italianos, são os principais exemplos de bens tombados na esfera federal. Há cerca de 20 bens estaduais e, só em Porto Alegre, 37 municipais.
Mais de um mês após o pico da tragédia, o impacto da elevação recorde no nível do lago Guaíba ainda é muito visível no Centro Histórico, em um percurso de sítios tombados que se estende do Mercado Público à Usina do Gasômetro.
A enchente se alastrou por todas as lojas do térreo do Mercado Público, inaugurado em 1869, danificou a parte elétrica e uma obra de saneamento na calçada interna.
A água chegou a 1,8 metro e prejudicou metade dos estabelecimentos. Na parede, a marca aparece bem acima da placa que mostra o alcance do Guaíba em maio de 1941, a maior cheia até então.
O espaço recém havia sido restaurado após um incêndio que destruiu quase 60% do segundo andar em 2013. A área foi liberada novamente em 2022.
O Mercado Público, que recebe 300 mil pessoas por dia, reabriu na sexta-feira (14) para acesso ao segundo andar e para lojas com acesso direto para a rua. A prefeitura estima que a reconstrução do prédio custará R$ 5 milhões. Comerciantes projetam prejuízos de R$ 15 milhões a R$ 27 milhões em mercadorias, mobiliário e dias fechados.
A duas quadras dele fica a praça da Alfândega, sítio tombado ocupado por mesas de xadrez, engraxates e bancos para descanso. Por semanas, somente barcos, botes e jet-skis transitaram por lá. O espaço abriga o Margs (Museu de Arte do Rio Grande do Sul), cujo acervo reúne 5.700 obras, muitas do século 19.
Graças a uma força-tarefa, mais de cem quadros foram realocados em outros locais do prédio e nenhuma obra de destaque –como de Iberê Camargo, Candido Portinari ou Alfredo Volpi– foi perdida. O térreo, no entanto, foi alagado até 2 m, danificando obras do acervo em papel, como gravuras e fotografias.
A enchente também comprometeu o novo sistema de climatização do museu, documentos administrativos e a mobília.
Para Francisco Dalcol, diretor do Margs, depois de toda a organização e limpeza, a disposição de obras no museu precisará ser repensada. “O primeiro andar não pode mais cumprir essa finalidade, ainda mais com o agravamento dos fenômenos climáticos que estamos vivendo.”
Ele diz que, até o momento, não foram identificadas rupturas de viga no prédio centenário, mas uma série de canalizações de esgoto pluvial passam por baixo do prédio e precisarão ser investigadas.
“A informação que a gente trabalhava no museu era de que o sistema suportaria até 6 m de altura, mas a praça da Alfândega começou a ser alagada bem antes disso, por volta dos 4 m”.
Ainda na praça da Alfândega, a antiga agência central dos Correios, que dá lugar ao Memorial do Rio Grande do Sul, também foi inundada. Os prejuízos ainda estão sendo apurados.
Na Casa de Cultura Mario Quintana, museu do antigo hotel onde morava o poeta, os principais danos foram na cinemateca. A rede elétrica, o piso, mais de 200 poltronas, carpetes e todo mobiliário foram danificados.
A enchente do Guaíba afetou os bairros com maior patrimônio inventariado: Centro Histórico, Cidade Baixa e região do 4º Distrito.
Porto Alegre está em contato com o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) para dar apoio na avaliação dos danos. O maior desafio ainda é reconhecer o quantitativo de patrimônio danificado.
A EPAHC (Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre) montará uma comissão para monitorar bens alagados que abrigam instituições culturais municipais atingidas, como o Museu Joaquim Felizardo, dedicado à história da capital.
“O museu tem uma qualidade muito boa, porque o piso dele é de grama, então absorveu bem a água, que não ficou empoçada por muito tempo”, diz Débora Magalhães, diretora da EPAHC.
A Secretaria de Cultura do estado trabalha com 484 voluntários, sendo 313 técnicos em conservação, restauração, museologia e arquitetura. O governo gaúcho e o Banrisul vão destinar R$ 25 milhões para a recuperação de instituições ligadas à cultura.
Em São Leopoldo, a 35 km de Porto Alegre, autoridades também não têm um quantitativo exato do estrago em bens tombados. A cidade ainda está na fase de limpeza, inclusive de casas, já que 75% dos habitantes foram diretamente atingidos.
Berço da colonização alemã no Brasil, a cidade recebeu os primeiros imigrantes em 1824. A zona próxima à beira do rio do Sinos concentra a maior parte da arquitetura histórica. A cidade se preparava para o bicentenário da imigração, mas a enchente afetou toda a área do centro, impedindo a celebração.
“O estado atual é que, em menos de 60 dias, a gente não vai conseguir limpar minimamente a cidade”, avalia Jari da Rocha, secretário-adjunto de Cultura do município.
No momento, o foco é a remoção dos rastros da enchente das ruas. “O próximo estágio, depois de recolhidos os entulhos, é começarmos a computar e avaliar o prejuízo estrutural”.
Na cidade fica o primeiro sítio histórico tombado pelo Iphae (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul), a ponte 25 de julho, que foi interditada após a forte correnteza do rio.
Em uma ilhota próxima fica o Museu do Rio dos Sinos, que ocupa a sede administrativa do antigo cais do porto da cidade, construído em 1863. “O prédio é acostumado a pegar enchentes, mas a água passou de 2 metros no interior do espaço”, diz o secretário.
A praça do Imigrante, que estava sendo restaurada com pedras portuguesas, virou um lamaçal.
O pequeno município de Santa Tereza, tombado como patrimônio federal em 2012, foi alvo de quatro cheias do rio Taquari em menos de um ano. O núcleo urbano tem 25 casas de madeira e alvenaria construídas por imigrantes italianos. Uma ponte foi arrastada com a força da água. O maior prejuízo, entretanto, está na agricultura e nas estradas.
O arquiteto Jorge Luís Stocker Jr. afirma que os prédios antigos costumam ter fundações diretas sobre o solo em alvenaria, pedra ou até estacas de madeira, e que é natural que a água do solo penetre na estrutura, evaporando pelo porão ou pavimentos térreos. O problema acontece quando essas áreas inferiores passam por um longo período de submersão. “Materiais mais porosos, como o tijolo e o reboco tradicional, à base de cal, vão absorver bastante água”, diz.
Entre os riscos, ele cita a umidade retida nas paredes, que induz a proliferação de micro-organismos, e a infiltração de sais. “Quando a água seca, esse sal cristaliza dentro de um tijolo, por exemplo, e muitas vezes rompe o tijolo, porque ganha espaço.”