Médico: “É uma roleta-russa; jovens estão queimando suas vidas”
A morte do cirurgião dentista João Victor Pereira de Souza, de 29 anos, por pneumonia nesta semana reacendeu o debate sobre o uso de cigarro eletrônico, já que ele era um consumidor.
Mas a indústria tinha que inventar algo para continuar produzindo e lucrando com a venda do tabaco
Referência em pneumologia em Mato Grosso, o médico Clóvis Botelho admite que pode haver relação entre a morte e o uso do produto, mas diz, no entanto, que primeiro é preciso descartar outras possíveis causas. Apesar disso, o especialista não tem dúvida de que os cigarros eletrônicos são um mal para a sociedade e podem representar um retrocesso em uma luta de décadas contra o tabagismo.
“Você está inalando substâncias que não sabe o que é. Então tudo pode ocorrer. Por isso que é uma roleta-russa”, afirmou Botelho, que é formado em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e tem doutorado em Pneumologia pela Universidade Federal de São Paulo.
Nesta entrevista concedida nesta semana ao MidiaNews, ele ainda criticou o projeto em discussão no Congresso Nacional que regulementa o produto.
Leia os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Os riscos associados aos cigarros eletrônicos são semelhantes aos dos normais?
Clóvis Botelho – Nós estamos começando a conhecer agora as doenças associadas ao cigarro eletrônico. Mas só de conhecer a nicotina há quase 100 anos, a gente sabe que é maléfico. E nesses dispositivos eletrônicos, há um monte de coisa para poder ajudar a vaporização da nicotina.
Para que ela aqueça e vaporize, usa-se metais pesados, e a pessoa aspira a isso. Esse metal pesado vai para dentro dos alvéolos, porque são nanopartículas. Ele entra no alvéolo pulmonar, entra na nossa hemácia, circula por nosso organismo todo e deposita-se no cérebro, no coração, em todo organismo, e não sai nunca mais. É um depósito. Imagina daqui 15, 20 anos, o que vai acontecer com esse indivíduo que está acumulando metais pesados por todo o organismo, em áreas nobres? Nós não sabemos, mas com certeza não será algo positivo.
Estudos mostram que pessoas que trabalham com esses metais pesados desenvolvem doenças graves, cânceres… Além dos metais pesados, para poder liquefazer, para fazer essa transformação em aerosol, usa-se propilenoglicol, ou substâncias análogas. Para tirar o sabor ruim, o odor ruim da nicotina, eles acrescentam aromatizantes, flavorizantes, um monte de substâncias que, geralmente, são derivados de açúcares, que são muito agressivos e causam inflamação na via aérea.
Toda substância orgânica, isso no estado de cigarro, qualquer lugar que entra em combustão ou que aquece, a gente chama de pirólise e pirossíntese, que é a quebra das moléculas pelo fogo, e essa ação produz novas substâncias que nós não conhecemos. Por isso que há pacientes que têm Evali (sigla em inglês para lesão pulmonar associada ao uso cigarro eletrônico), fazem transplante de pulmão, vai para UTI, têm lesões crônicas ou morrem. E nós estamos percebendo uma coisa, isso já é uma evidência, que as doenças associadas ao Evali estão vindo em tempo mais curto.
No tabagismo antigo, demorava 10, 15, 20 anos para se fazer doença. No tabagismo eletrônico, estamos vendo doenças muito graves ocorrendo em curto tempo. Isso significa que esses componentes do cigarro eletrônico são mais agressivos do que o cigarro tradicional, possivelmente.
MidiaNews – Estamos regredindo no combate ao tabagismo?
Clóvis Botelho – Até então a indústria tabageira estava perdendo clientes, pelo trabalho de conscientização. No Brasil, por exemplo, eram 42%, 45% de fumantes. Agora, são em torno de 10%. Mas a indústria tinha que inventar algo para continuar produzindo e lucrando com a venda do tabaco. Então, há 10, 15 anos, um cientista falou que talvez fumar só a nicotina ajudaria a parar de fumar. E o cigarro eletrônico entrou como se fosse para ajudar o fumante a parar de fumar. Mas foi um desastre. É um desastre! Acenderam o fogo numa pira de pólvora.
Jovem faz uso de cigarro eletrônico
MidiaNews – Nesta semana, um dentista morreu de pneumonia em Cuiabá. Parentes disseram que ele era um consumidor de cigarro eletrônico. A morte dele pode ter relação com o produto?
Clóvis Botelho – A Eveli foi identificada há dois, três anos em jovens que morriam e tinham doença respiratória aguda grave, com lesões pulmonares que eles não sabiam identificar. Procuraram tudo quanto é causa e não acharam. Um dos fatores de risco que eles tinham: fumavam muito cigarro eletrônico. É uma possibilidade [ele ter morrido disso], mas tem que afastar todas as outras causas.
MidiaNews – A nicotina pode causar overdose?
Clóvis Botelho – Pelo cigarro fumado é muito raro [ter overdose]. Acontecia geralmente com quem fumava três maços em pouco tempo, cerca de uma hora, criança que comia cigarro acidentalmente. Agora, no cigarro eletrônico, essa chance é maior. Por quê? Na primeira tragada você sente tontura, um mal-estar, mas depois o seu organismo vai se acomodando. Daí fuma um, fuma dois e daqui a pouco está fumando dez, vinte ou trinta.
O risco do cigarro eletrônico é esse, porque as pessoas não têm noção da quantidade de miligramas de nicotina que estão inalando. Porque é prazeroso, é bonito, mas isso pode resultar em uma intoxicação aguda.
Além dos efeitos da nicotina – mal-estar, tontura, náusea, vômitos… -, podem ocorrer lesões graves nas vias respiratórias, porque é inflamatório, é irritativo. Uma coisa é que você tem uma agressão leve, que o nosso organismo consegue controlar, porque nossos mecanismos de defesa atuam e cronicamente vão se acomodando. Por exemplo, uma coisa é passar um mililitro de ácido na minha pele. Vai queimar. Agora, se eu jogar um litro de ácido na pele, vai fazer um buraco.
Por enquanto, a ciência não sabe ainda como estabelecer limites, por exemplo, de poder fumar até 10 cigarros. Então, o fumante está jogando roleta-russa. Ele não sabe se a bala vai atingi-lo naquele momento, mas está dando tiro nele mesmo. Uma hora a bala acerta. Ele pode ser o próximo a evoluir para uma condição que resulte em uma doença.
MidiaNews – Algumas pessoas tossem quando fumam o cigarro eletrônico, têm dificuldade de respirar. Por que isso?
Clóvis Botelho – A gente volta naquele assunto: a pessoa não sabe a reação que pode desencadear. Ela pode ter um edema de laringe e morrer por falta de ar naquele momento. Pode ter edema de via aérea, que pode fazer um quadro de asma grave. A pessoa pode achar que não é nada e quando perceber será tarde. Você está inalando substâncias que não sabe o que são. Então, tudo pode ocorrer. Por isso que é uma roleta-russa.
MidiaNews – Quais são as substâncias químicas presentes nos líquidos dos cigarros eletrônicos e quais são os seus efeitos no corpo humano?
Clóvis Botelho – O cigarro tradicional a gente já conhece todas as agressões que ele pode trazer. No eletrônico, já foram constatadas 2 mil substâncias presentes na fumaça. Por volta de 150 foram identificadas. A pessoa acha que está fumando só nicotina e diz que é mais “puro”, mas só a nicotina já causa um grande mal. Ela é a que causa dependência e é um potente vasoconstritor. O que significa isso? Que você fecha todos os seus vasos sanguíneos.
E nicotina circula por todo o organismo. Então, vai ter pouco sangue no cérebro, no coração, nos músculos, tudo vai ser comprometido. Tem uma média que a pessoa suporta daquela droga, que a gente chama de dose terapêutica e dose letal. Apesar de isso variar de cada pessoa, chega um momento em que o organismo não suporta mais. E um dos maiores problemas do cigarro eletrônico é que um vape, às vezes, tem mais de 40 miligramas de nicotina por mililitro de essência.
O cigarro comum tem até 1 miligrama de nicotina por unidade. Quer dizer que a pessoa fuma 40 cigarros em uma hora, duas horas. Ele esquece que cada tragada daquela leva uma quantidade enorme de nicotina, muito maior do que o cigarro comum. Então, o discurso do fumante do cigarro eletrônico, que fala que é menos maléfico do que o cigarro tradicional, está incorreto. É muita coisa! O fumante não percebe isso.
MidiaNews – Quais os impactos do uso de cigarros eletrônicos para os pulmões a curto e longo prazo? Já existem estudos sobre isso?
Clóvis Botelho – Não. O que nós temos são alguns relatos de casos descritos, mas estudo grande mostrando os efeitos, aqui, no Brasil, não tem. Lá fora já existem alguns estudos mostrando o efeito deletério. Principalmente esses casos de Evali e casos de processo inflamatório a curto prazo. Algo que se esperaria mais tempo para o cigarro comum, está acontecendo em pouco tempo. Já tem alguns casos até de câncer.
Agora, o que há de hipótese é que novas doenças poderão ocorrer, porque são substâncias diferentes daquela do tabagismo tradicional
Das doenças clássicas, com certeza vai ter. Enfisema, bronquites, traqueídes, alveolites, todo tipo de inflamação no pulmão a gente sabe que vai ter. Segunda coisa: como a quantidade de nicotina é muito grande e tem ação no sistema cardiovascular, aumenta a frequência da taquicardia e pode provocar também doenças coronarianas. É uma coisa que a gente tem certeza, porque já há relatos sobre isso. Agora, o que há de hipótese é que novas doenças poderão ocorrer, porque são substâncias diferentes daquela do tabagismo tradicional. Por exemplo, sobre essa questão do depósito de metais pesados, a gente não tem noção do que vai ocorrer. Mas imagina-se que, como é um material tóxico, vai ter alguma coisa. Agora, em quanto tempo, o que vai acontecer, a gente não tem noção. Os jovens estão queimando suas vidas, a saúde, suas células e aumentando as chances de doenças graves.
MidiaNews – A Evali é incurável?
Clóvis Botelho – É incurável. Se a pessoa sobreviver, vai ficar com uma lesão pulmonar crônica, uma deficiência respiratória crônica. É como se ele queimasse o pulmão em vários lugares. Ele tinha uma capacidade, por exemplo, de 100, vai ficar com 10%, com 15%, 20%, dependendo da extensão da lesão. E muitas vezes tem que fazer transplante pulmonar.
O cigarro eletrônico pode dar lesão gravíssima nos alvéolos pulmonares, causando as alveolites e ali formar um processo pneumonia crônico. E aí, na evolução disso, lógico que pode ter bactéria. Porque são bactérias que se alojam naquele tecido, que está sem defesa. Se tem uma queimadura aguda, grande na área pulmonar, naquele lugar forma-se uma pneumonia, química, vamos dizer assim. Mas logo depois chegam as bactérias.
MidiaNews – O senhor tem visto que o público afetado com esse produto é mais jovem do que com o cigarro comum?
Clóvis Botelho – Com certeza! Com certeza! Na verdade é o seguinte: nós temos dois grupos de fumantes de cigarro eletrônico. Um deles são aqueles fumantes tradicionais que queriam parar de fumar e migraram para o eletrônico. Esse é um público que nós já conhecemos, sabemos quem são.
Agora tem uma nova leva que aprendeu, indiretamente, por influência. Várias pessoas falaram que é melhor, que é mais bonito, que é mais leve. São pessoas jovens. A indústria pegou esse nicho. Então, eles fizeram marketing em cima do cigarro eletrônico. Sai uma fumacinha agradável, gostosa, cheirosa… Não fica com mau hálito, um monte de coisa que se coloca, sabores… Quem que entrou nessa? Os jovens.
E é um grupo que está crescendo. Até com universitário de curso de Medicina a gente está enfrentando esse problema. Eu dou aula na Univag. Lá a gente vê os colegas fumando [cigarro eletrônico], os alunos, os futuros colegas fumando. É triste, é triste.
MidiaNews – De todas essas substâncias que o senhor falou que existem no cigarro eletrônico, a única que vicia é a nicotina?
Clóvis Botelho – Por enquanto, pelos conhecimentos atuais, é a nicotina. A nicotina é a ponta de lança. Depois, naturalmente, a pessoa acaba incorporando, através dos estímulos, como sair com os amigos. No cigarro tradicional era a questão do cafezinho. Tomou um cafezinho, despertava a vontade de fumar. Então, são associações de estímulos, mas o que dá dependência mesmo é a nicotina. E ela estimula. Então, o nosso cérebro acostuma com essas associações e leva isso para o resto da vida se a pessoa não frear.
MidiaNews – O Congresso Nacional está discutindo a regulamentação dos cigarros eletrônicos. O senhor acha que essa regulamentação é bem vinda ou defende a proibição total deles?
Clóvis Botelho – Pela legislação brasileira ainda não pode comercializar, não pode usar. O que todo mundo está fazendo é ilegal. Essa senadora, Soraya Thronicke [autora do projeto], está fora de si. Não é possível. Desde a década de 80, faço trabalhos tanto de pesquisa, quanto de extensão, fazendo palestras, dando orientação sobre o antitabagismo. E agora que vem esse projeto… Poxa, conseguimos reduzir a 10% a população tabagista, um feito histórico, e agora está vindo essa nova luta, essa nova pandemia. E aí, ainda teremos que lutar contra essa questão de regulamentar o uso do cigarro eletrônico. O Estado, vamos dizer assim, as autoridades e os homens públicos, que fazem parte dessa massa, querem trocar dinheiro por saúde.
Dizer que vão arrecadar mais.. Não! Esse dinheiro é sujo, não vale. Antigamente, eles estimulavam a fumar, porque era altamente rentável para o Governo. Mas esquecem que esse dinheiro não paga as despesas com a doença do cigarro. Isso já foi provado. São milhões em pensões, dinheiro que vai precisar colocar na saúde pública. Tudo isso feito às custas de sofrimento das pessoas.