Anatomia da restauração | Estadão MT

“Como eu posso reverter algo que já se tornou irreversível?”. Com esse questionamento, um assíduo participante dos círculos de construção de paz na Cadeia Pública de Colniza provocou no grupo uma sensível reflexão sobre o próprio significado de Justiça Restaurativa. Condenado pelo crime de homicídio consumado, o participante trouxe essa reflexão quando foi indagado – através de uma das perguntas norteadoras – sobre a necessidade da reparação enquanto medida para amenizar o sofrimento daqueles que, direta ou indiretamente, sofreram as consequências do delito. 

A ideia popular de reparação está intrinsecamente relacionada com o conceito de correção. Corrigir o erro, por essa perspectiva, resultaria na restituição ao status quo ante, isto é, ao estado fático que se verificava antes da falha. De fato, se partirmos dessa premissa, a ideia de reparação seria inviável quando se está diante de crimes com efeitos definitivos, a exemplo do homicídio consumado. 

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É necessário subverter, no entanto, o senso comum para que alcancemos a real dimensão do que significam os termos “reparação” e “restauração”. Para tanto, é crucial que ajustemos os focos de nossas lentes para enxergar de outra maneira a questão criminal. O modelo tradicional entende o crime como uma violação da norma. Aplica-se a pena porque houve a infração por um agente responsabilizável e isso basta. Outros questionamentos mais próximos da dimensão humana do conflito são de somenos importância e logo recebem a alcunha de “extrajurídicos”. Nesse contexto, vítimas e comunidade são relegadas a papéis secundários, longe do foco jurisdicional. Até por esse motivo, o desenvolvimento da ideia de reparação ou restauração é precário. 

É possível compreender que, no modelo restaurativo, a pacificação do conflito criminal tem, pelo menos, três dimensões ou graus: a) restituição; b) reparação; c) amenização dos danos. Todas essas dimensões podem ser compreendidas como graus de concretização do ideal restaurativo. 

Por restituição, entende-se a devolução do que foi indevidamente retirado da vítima, a exemplo da entrega do bem furtado. Aplica-se quando for possível e geralmente se relaciona a bens jurídicos disponíveis. Reparação, por sua vez, aplica-se quando não se é possível a restituição do bem da vida lesado pelo delito, porém é possível compensar o ofendido através de outra medida. É o que acontece, por exemplo, num crime de lesão corporal em que o autor da ofensa arca com os custos do tratamento médico até a completa recuperação do ofendido. 

Por último, há situações em que nem mesmo a reparação completa é possível, muito menos a restituição. É o caso de crimes com efeitos definitivos, a exemplo do homicídio consumado. Nesse caso, a vítima não poderá receber reparação, nem restituição do que lhe foi tomado. Isso, entretanto, aplica-se às vítimas diretas. Mas é certo que crimes dessa natureza, no mais das vezes, vitimizam indiretamente diversas outras pessoas, a exemplo dos familiares, dos filhos, dos amigos da vítima. É possível falar em restauração nesses casos, no grau de amenização das dores causadas. 

Tomemos um exemplo ilustrativo. José cometeu crime de Latrocínio contra Mateus, baleando-o na frente da mãe. Após a morte do filho, a mãe (vítima indireta) passou a culpar-se pelo ocorrido, pois incentivou Mateus a reagir ao assalto, o que ocasionou o tiro fatal. Durante anos, a mãe nutriu esse sentimento e, inclusive, ouviu do autor da ofensa que a responsabilidade pelo ocorrido era mais dela do que dele. O processo penal tradicional – como sempre – tramitou alheio a qualquer sentimento subjacente. A mãe, no caso, foi chamada a depor e, embora “oitivada”, não foi jamais escutada. Aplicada a pena, José recolhido à prisão aguarda o momento da progressão de regime. Em determinado momento, porém, anos depois do ocorrido, resolve inserir num programa de Justiça Restaurativa em curso na unidade prisional. Logo assimilou os pressupostos da metodologia e resolveu escreveu uma carta à mãe da vítima. Na missiva, além de um sincero pedido de perdão, havia um “alvará de libertação”. Dizia: “jamais foi sua culpa, a responsabilidade foi minha. Sinto muito pela dor que causei”. 

A vida não pôde ser restituída. O dano não pôde ser reparado. Mas é fato que a dor foi amenizada. Falar em restauração é falar em pacificação, seja ela em qualquer grau. Aquele que decide trilhar esse caminho, cura a si mesmo e procura curar o outro. Quem dera a Justiça Criminal se preocupasse em incentivar a cura mútua em vez de distribuir sofrimento expiatório. A mudança de lentes exigida pela Justiça Restaurativa é de enxergar o crime como uma violação de pessoas e sentimentos muito longe de constituir uma mera violação à norma. 

 

*Maxuel Pereira Dias é defensor público em Mato Grosso.



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