MidiaNews | Desistência voluntária
O ex-presidente Michel Temer (MDB), entrevistado pela CNN (Brasil) em 08 de fevereiro de 2024, afirmou não haver razão para prisão do também ex-presidente Jair Bolsonaro, levando em conta o que havia sido revelado ao público até aquele momento, muito embora, na opinião dele, houvera uma intenção e uma tentativa de ação para um golpe de Estado, ao se referir aos eventos de 08 de janeiro de 2023 na Praça dos Três Poderes.
A entrevista ocorreu no calor dos fatos (jurídicos/políticos) resultantes da chamada operação tempus veritatis, deflagrada pela Polícia Federal (PF) com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF), que investiga uma suposta organização (associação criminosa) que teria atuado em uma tentativa de golpe de Estado para abolir de forma violenta o Estado Democrático de Direito.
Os argumentos jurídicos lançados pelo ex-presidente Temer, jurista de grande quilate, vêm balizando a defesa dos investigados e definindo a linha investigativa. Explico: existe um conceito fundamental no Direito Penal chamado de iter criminis -termo latino que significa o caminho do crime-, são as fases ou o percurso de uma conduta (no sentido de uma ação humana livre) até que ela seja considerada uma ação criminosa propriamente dita.
O iter criminis é dividido em duas fases principais: a fase interna e a fase externa; a fase interna corresponde ao momento da cogitação, enquanto a fase externa abrange todas as demais etapas do caminho do crime, cada uma têm características próprias, vejamos.
1. Cogitação: é a fase interna do iter criminis, na qual o indivíduo (agente) cogita cometer um crime, mas não exterioriza o pensamento ou torna concreta essa vontade. Nesta fase, o agente não se prepara para o crime, apenas o imagina, isto é, decide de forma mental cometer o delito e pondera sobre os possíveis desdobramentos da sua ação. A cogitação não é punida porque não há qualquer manifestação concreta, com efeito, não é possível provar que alguém está pensando em cometer um crime.
2. Preparação: é a 1ª fase externa do iter criminis, que engloba os atos que passam da cogitação para a ação objetiva, ou seja, as intenções já saem do campo das ideias e passam a influenciar o mundo exterior. O agente começa a realizar ações práticas para viabilizar o crime, tal como o planejamento e a organização dos meios necessários para a execução do ato criminoso; por exemplo, a aquisição de uma arma para cometer um homicídio, em tese, é um ato preparatório não punível. Em regra, os atos preparatórios também não são puníveis, salvo em casos excepcionais previstos em lei; o exemplo clássico de ato preparatório punível é o delito de petrechos para falsificação de moeda (art. 291 do Código Penal) – nesse caso, apesar de ser um ato preparatório para outro crime, já é a execução do crime previsto no art. 291 do Código Penal.
3. Execução: nesta 2ª fase externa do iter criminis o agente inicia a execução do plano de ação, realizando condutas que, direta e imediatamente, são tendentes à consumação do crime pretendido. Conceitualmente, não tem mais volta, ficando para trás a fase de cogitação e preparação, portanto, deste ponto em diante o comportamento do indivíduo pode e deve ser punido, mesmo que o crime não seja finalizado, pois a tentativa também é punível criminalmente. O agente atingiu o núcleo do tipo penal, o verbo, realizando a conduta reprovada pela lei penal.
4. Consumação: é o estágio final, 3ª fase externa do caminho do crime, o agente praticou todos os atos previstos no tipo penal e alcança o resultado esperado. Esse conceito é muito importante, pois crava a distinção entre a tentativa e a consumação de um crime, ele é de fundamental importância para o Direito Penal, pois afeta diretamente a dosimetria da pena, posto que na forma tentada de um crime a punição é mais branda; a tentativa, ocorre quando o agente inicia a execução do crime, mas não consegue concluí-lo por circunstâncias alheias à sua vontade.
Em regra, os tipos penais são descritos na forma consumada -matar alguém-, sem que seja necessária outra tipificação que, por exemplo, prescreva a proibição de “tentar matar alguém”. O art. 14, inciso I, do Código Penal (CP), define que um crime é considerado “consumado, quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”.
Isso não acarreta prejuízo, porque a ocorrência do crime na forma tentada é descrita no mesmo art. 14, inciso II, portanto, é crime “tentado, quando, iniciada a execução, (mas) não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”. Desse modo, está configurado o crime da sua forma tentada quando foi percorrido todo o caminho dos elementos do tipo penal, mas por alguma situação externa e alheia à vontade do agente, ocorre situação que impede o êxito, isto é, a consumação delitiva.
Enfim, o iter criminis é o instrumento conceitual muito importante, porque torna possível identificar o momento em que uma conduta se torna relevante para o direito penal, autorizando o Estado a intervir para a responsabilização sancionatória; tal conceito permite avaliar o momento no qual a conduta de um indivíduo pode ser considerada crime, diferenciando a mera intenção (cogitação) de cometer um ato ilícito de sua prática efetiva (preparação/execução/consumação).
Enfim, o iter criminis é o instrumento conceitual muito importante, porque torna possível identificar o momento em que uma conduta se torna relevante para o direito penal, autorizando o Estado a intervir para a responsabilização sancionatória
As investigações da polícia, acerca dos acontecimentos de 08 de janeiro, se concentram na busca de indícios e evidencias que identifiquem de forma cabal que Bolsonaro e assessores mais próximos cogitaram intelectualmente e determinaram a preparação, e a execução de uma suposta trama para aplicar um golpe de Estado, tendo por ponto de partida investigatório uma minuta de golpe -que teria sido revisada pelo ex-presidente-, o conteúdo do celular e as declarações fornecidas pelo estafeta mor do Palácio do Planalto, o tenente-coronel Mauro Cid (ajudante de ordens do ex-presidente), que agora é colaborador da Justiça.
Michel Temer levando em conta o que havida de “concreto” à época da entrevista, levantou uma bela tese de defesa para os agentes do 08 de janeiro, refiro-me aos Miseráveis de Victor Hugo que arremeteram contra edifícios vazios.
O ex-Presidente jurista não ofende a inteligência alheia, pois reconhece a intenção de golpe de Estado (cogitação), porém, qualifica como ineficazes as condutas de preparação e execução do plano de golpe, o que chamou de “esboço de ação”.
É agora que aparece outro conceito doutrinário do direito penal que interessa a defesa, o Meio Ineficaz. Meio ineficaz é a designação de um instrumento ou arma utilizada para cometer o crime, mas que não é capaz de produzir o resultado pretendido; por exemplo, roubar com uma faca de papel, atirar com balas de festim, tentar matar alguém com arma de brinquedo e/ou envenenar alguém com uma substância que não é venenosa.
Segundo Temer, houvera a intenção de golpe, e um esboço de ação para isso: “Quando eu digo tentativa de ação, foi aquele movimento que se deu em Brasília, mas de pessoas que não tinham, exata e precisamente, um plano completo”, explicou.
Eis aqui o cerne da tese defensiva: é considerado impossível o crime quando o meio para o seu cometimento é ineficaz, com efeito, não é aplicada nenhuma sanção.
Ironicamente os tipos penais dos crimes contra as instituições democráticas, previstos no Código Penal, punem a forma tentada não pedindo consumação do crime, por óbvio, porque se consumado os crimes não haveria motivo e nem quem os pudesse julgar.
Melhor dizendo, a Abolição violenta do Estado Democrático de Direito [Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência], e, Golpe de Estado [Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência], são crimes que não exigem a consumação, bastando a forma tentada do crime para punir o agente, pois protegem um bem jurídico maior pertencente a toda a coletividade.
Razão pela qual, nesses tipos penais, é defendida a tese de que os atos preparatórios podem ser entendidos como tentativa, independentemente do início da execução do crime propriamente dita, isto é, não são claros os limites objetivos do iter da preparação do iter da execução do crime.
O questionamento que exsurge do debate, pode ser assim resumido: é necessário a existência da “violência ou grave ameaça” para que se configure a tentativa de prática dos crimes contra as instituições democráticas, porque violência é elemento objetivo do tipo.
Em outras palavras, a tentativa de execução desses crimes estaria configurada com a prática de atos tendentes a induzir a “violência ou grave ameaça”, tais como a desinformação e ataques ao sistema eleitoral e/ou incitação de militares e/ou inteligência paralela como afirma a Polícia Federal; ou é imprescindível que esteja configurada de forma cabal a “violência ou grave ameaça” para se configure a tentativa desses crimes?
Muito pouco foi deixado ao público saber sobre as investigações dos atos de 08 de janeiro, até a deflagração da operação contragolpe da Polícia Federal que, em 19 de novembro do corrente ano, prendeu um general da reserva, Mario Fernandes, ex-comandante dos chamados “Kids Pretos”, apontado por Mauro Cid como um dos militares mais radicais no entorno do ex-presidente; os Kids Pretos são indivíduos com treinamento especial das forças armadas, preparados para exercício de guerra irregular, não convencional.
Enfim, a operação contragolpe revelou um suposto plano de assassinato de Ministro do STF, e de presidente e vice recém eleitos (2022), chamado de plano “Punhal Verde Amarelo”. O esforço investigativo dessa operação está concentrado na comprovação do envolvimento de membros dos “Kids Pretos” na chamada “trama golpista” de 08 de janeiro.
A história está em marcha, pois na quinta-feira 21 de novembro do corrente ano, a Folha de S. Paulo faz chamada de matéria, assim: “PF associa plano parra matar Lula, Alckmim e Moraes a trama golpista no Governo Bolsonaro – ação operacional descoberta reforça provas sobre tentativa de golpe de Estado, aponta investigação”.
No mesmo dia, o colaborador Mauro Cid é acusado pela PF de descumprimento do acordo de delação, razão pela qual é levado diante de um Ministro do STF, para que este decida se vai manter o acordo. Ao que parece, o acordo foi mantido, mas tudo que foi dito deve ser confirmado por outros meios de prova, assim foi na Lava-Jato.
Contudo, o ex-presidente Michel Temer, disse também que existe golpe de Estado quando as Forças Armadas querem, mas os militares “não quiseram isso”. Arrematou a entrevista afirmando: “Pode sim ter envolvido um ou outro general, muito mais aqueles próximos ao presidente Bolsonaro, mas nada mais do que isso […]”.
Dessarte, não seria ilícito compreender que houve a Desistência Voluntária da execução de um golpe de Estado. Desistência Voluntária está previsto no artigo 15 do Código Penal: “o agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados”.
Na desistência voluntária o agente conta com todas as condições para prosseguir na prática do crime, mas desiste da praticar a execução, em outras palavras, o agente não quer mais praticar o crime. Isso não pode ser confundido com o conceito de tentativa de praticar um crime, pois na tentativa o crime não se consuma por conta de circunstâncias alheias à vontade do agente, que insistiu na prática (execução) do crime em busca do resultado (consumação).
Desta forma, na desistência, o agente responderá tão somente pelos atos já praticados, acaso estes sejam considerados crime na lei penal; por exemplo, o agente que desiste de furtar um objeto, após ter quebrado um vidro, portanto, responderá criminalmente por danos ao patrimônio.
Por fim, os agentes do 08 de janeiro de 2023 foram indiciados pela Polícia Federal, pela suposta pratica de crimes contra as instituições democráticas, porém, caberá ao Procurador da República ofertar a denúncia que, se ofertada, pode levar o STF a deliberar em caso concreto, quem sabe, as seguintes teses:
(i) A tese da acusação poderá se assentar no fato de que foi descoberta uma conspiração para dar um golpe de Estado, revelada ainda na fase de cogitação e atos preparatórios, uma vez que não foi praticada ou mandado praticar a “violência ou grave ameaça” -elementos objetivos dos crimes contra as instituições democráticas-, em razão da ação da Polícia Federal que, em tese, foi quem inibiu a execução e a consumação do o crime de golpe de Estado; em outras palavras, muito embora não tenha sido iniciada a fase de execução do crime propriamente dita, será requerida a condenação dos agentes pela tentativa dos crimes descritos nos arts. 459-L e 459-M do Código Penal, levando-se em conta apenas as condutas objetivamente levadas a cabo na preparação do crime.
(ii) A defesa poderá insistir na tese de que, para a condenação dos agentes pela prática de crimes contra as instituições democráticas, é imprescindível evidencias robustas do início da execução do suposto crime, devendo estar efetivamente comprovada a “violência ou grave ameaça” com potência (eficácia) para efetivar um golpe de Estado -elementos objetivos dos crimes contra as instituições democráticas-, isto é, deve estar comprovada nos autos capacidade dos agentes de consumar um golpe de Estado e/ou abolir de forma violenta o Estado de Direito.
Entretanto, o crime de golpe não se consumou porque os supostos agentes desistiram de prosseguir na execução, com efeito, é despicienda a comprovação ou não dos elementos do tipo no caderno processual, em razão da desistência voluntária; caíram em si e desistiram do delírio golpista, penso eu.
Aqui encerro, as especulações da quase ficção, sem pretensão de ser acadêmico tampouco inédito, tentando expressar o mínimo juízo de valor pessoal acerca do que é investigado, dentro das possibilidades, para expor jornalisticamente o debate jurídico em curso.
Diogo Egidio Sachs é advogado