Delegada: educação sexual ajuda a prevenir abusos em crianças

A delegada Mariell Antonini Dias, da Coordenadoria de Enfrentamento à violência Contra a Mulher e Vulneráveis, defendeu a educação sexual como uma ferramenta para evitar crimes sexuais contra crianças e adolescentes.

Não se trata de introduzir a criança à vida sexual, é explicar noções a respeito das partes do corpo, dos tipos de contato que se pode ter

 

“Não se trata de introduzir a criança à vida sexual; é explicar noções a respeito das partes do corpo, dos tipos de contato que se pode ter […]. É uma forma de prevenção ao abuso sexual”, diz a delegada.

 

O tema, segundo ela, deve ser tratado com muita naturalidade e sem “tabus”. Cada assunto deve ser introduzido de acordo com a idade especifica recomendada. “Criança sem informação é mais suscetível a sofrer algum tipo de violência”.

 

A delegada esclareceu ainda assuntos como a pedofilia e disse que nem todo abusador de menores tem o transtorno. “Estudos mostram que nem todas as pessoas com pedofilia cometem abuso sexual, enquanto outras, sem o transtorno, podem praticar por oportunidade”.

 

Mariell Antonini falou sobre também sobre os desafios de uma investigação e os casos que mais marcaram a sua carreira.

 

Confira a entrevista completa: 

 

MidiaNews – Em que consiste a pedofilia e quando ela passa a ser um crime?

 

Mariell Antonini Dias – A pedofilia é um termo utilizado pela Medicina, classificado pela Organização Mundial da Saúde como um transtorno mental. Apesar de ser uma doença, não afeta a imputabilidade da pessoa, ou seja, quem possui esse transtorno entende o caráter de sua conduta. A pessoa sabe que tem um transtorno, mas o fato só passa a ser criminoso quando a vontade, o desejo ou a fantasia sexual relacionada à criança ou ao adolescente ultrapassa o plano da ideação e se concretiza. Enquanto permanece na órbita do desejo íntimo, é tratado como uma doença, não como crime. No ordenamento jurídico brasileiro, não existe o tipo penal “pedofilia”. A partir do momento que essa conduta se exterioriza, podemos falar em crimes como estupro de vulnerável, armazenamento ou transmissão de imagens pornográficas, ou a simulação de participação de crianças em cenas de nudez.

 

 

MidiaNews – Como os pedófilos que cometem crimes sexuais contra menores costumam agir e dissimular esses crimes? Existe um perfil?

 

Mariell Antonini Dias – A pedofilia é a doença em si, diagnosticada ou não. Estudos mostram que nem todas as pessoas com pedofilia cometem abuso sexual, enquanto outras, sem o transtorno, podem praticar por oportunidade. Não há um perfil específico para abusadores de crianças, mas a forma de abordagem varia. Segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2024, a maioria dos autores é familiar das vítimas. Quando falamos de vítimas de estupro de vulnerável, o perfil geralmente coincide com meninas de 0 a 13 anos.

 

 

Na abordagem tradicional, os abusadores geralmente são familiares ou pessoas próximas da vítima, com algum vínculo. Nesses casos, observamos que o perfil dos autores é o de uma pessoa comum que usa a confiança conquistada para se aproximar da criança, iniciando com presentes, elogios ou brincadeiras que evoluem para contatos físicos mais íntimos. Nesses casos, a violência tende a ser continuada. Em situações onde o autor é desconhecido, o abuso geralmente envolve violência ou grave ameaça e ocorre uma única vez devido à ocasionalidade da oportunidade.

 

Na abordagem virtual o autor se vale do anonimato e de alguns benefícios da internet, como o de poder mudar o seu perfil e simular ser outra pessoa. Ele observa o perfil das vítimas nas redes sociais, que trazem muitas informações como hobbies, música que gosta, esporte favorito. Fica fácil estabelecer um vínculo de confiança. Eles podem solicitar fotos ou vídeos íntimos e essas imagens, muito provavelmente, podem cair em redes de pedofilia. Outra situação é capturar rostos de crianças e simular a participação dela em um vídeo pornográfico, o que também configura crime.

 

 

MidiaNews – Como é o atendimento de uma criança vítima de violência sexual? Que cuidados devem ser tomados?

 

Mariell Antonini Dias – O atendimento precisa ser humanizado em todos os locais da rede por onde essa criança passar. Leis como a Henry Borel e a do Depoimento Especial vêm a formatar um sistema de proteção para as nossas crianças e prevê uma forma de oitiva especial para compreender o crime e comprovar a autoria. Primeiro fazemos a oitiva dos responsáveis legais, as pessoas que têm informação sobre o fato criminoso, a partir disso podemos colher uma escuta especializada ou depoimento especial sem fazer uma pergunta indutiva. Tem toda uma técnica especial de entrevista forense que precisa ser respeitada.

 

MidiaNews – Em que estado emocional e psicológico essas crianças costumam chegar?

 

Mariell Antonini Dias – Depende da situação. Quando o crime é muito recente a criança chega retraída, chorosa. Se for adolescente, observamos vários casos de automutilação, cortam o braço com gilete, começam a usar roupas fechadas para não exibir o corpo, não chamar atenção, não quer ter características do gênero. Tem outras, que o crime já passou há algum tempo e elas chegam mais tranquilas.

 

MidiaNews – Qual é a importância da educação sexual para evitar esse tipo de crime?

 

Mariell Antonini Dias – É muito importante. Não se trata de introduzir a criança à vida sexual; é explicar noções a respeito das partes do corpo, dos tipos de contato que se pode ter, o que é um carinho, o que é um ato maldoso, quais são os limites. Os estudos ensinam que é uma forma de prevenção ao abuso sexual. Os guias ensinam que de zero a três anos, temos que ensinar os nomes das partes do nosso corpo, e fazer isso de forma muito natural, sem tabu. A partir dos três anos, temos que ensinar sobre as partes íntimas. A partir dos cinco sobre questões de segurança. Quem pode tocar na parte íntima? É só quem estabelece esse contato com a finalidade de ajudar durante o banho, uma consulta, para limpar após as necessidades básicas. Isso é educação sexual de acordo com a idade. Criança sem informação é mais suscetível a sofrer algum tipo de violência.

 

 

Crianças educadas com muita subserviência a pessoas mais velhas, que não tem liberdade para dizer não, também estão mais vulneráveis a abusos sexuais. Porque é educada a sempre obedecer aos mais velhos. Temos que educar nossas crianças ensinando que o nosso corpo é um bem inviolável e que ninguém tem o direito de passar dos limites legais.

 

 

MidiaNews – Um caso recente chamou atenção na mídia: um segurança foi preso suspeito de estuprar um menino de 9 anos no Shopping Estação. Esse caso foge à regra?

A maioria dos casos de violência sexual é intrafamiliar, acontecem dentro de casa

 

Mariell Antonini Dias – A maioria dos casos de violência sexual é intrafamiliar, acontecem dentro de casa. Mas há casos em ambientes públicos, como esse, que são minoria. Neste caso, segundo foi reportado, a pessoa utilizou um estratagema, fingindo fazer uma brincadeira de se passar por policial. Geralmente, a violência começa dessa forma, buscando afinidade com a criança, um interesse comum, para poder abordar sem violência ou grave ameaça. 

 

MidiaNews – Nesse caso específico, o abusador era reincidente. A empresa que o contratou falhou no recrutamento?

 

Mariell Antonini Dias – É difícil comentar sobre a forma de contratação. Contudo, o Estado de Mato Grosso, em parceria com o Poder Judiciário, está desenvolvendo um cadastro de pedófilos, que será divulgado na página oficial da Sesp. Qualquer cidadão terá acesso a esse cadastro e poderá fazer essa pesquisa. Escolas, shoppings e ambientes comerciais terão acesso a esse cadastro e poderão fazer o seu juízo de valor.

 

MidiaNews – Poderia esclarecer como funcionam as tipificações de crimes sexuais contra menores? Todo tipo de crime é considerado estupro?

 

Mariell Antonini Dias – Estupro de vulnerável é toda prática sexual cometida com menor de 14 anos. O ordenamento jurídico, os tribunais pátrios consideram dessa forma. Tive o caso em que um homem começou a observar uma criança que estava com a mãe em uma loja. Quando essa criança se agachou para pegar uma boneca ele se posicionou atrás dela e ejaculou sobre a sua cabeça. Ele tocou nessa criança? Não, mas ejaculou na direção dela. Foi considerado um crime de estupro. Se fosse contra uma mulher adulta poderíamos considerar importunação sexual, mas em se tratando de menor de 14 anos, os tribunais pátrios entendem que toda conduta, seja um ato libidinoso ou conjunção carnal, vai ser considerada como estupro de vulnerável.

 

Temos várias outras figuras criminosas previstas no ordenamento: aliciar menores de idade para a prática sexual, armazenar conteúdos pornográficos, vender, transmitir, tem também a facilitação de acesso a conteúdo pornográfico para instruí-las e introduzi-las à vida sexual. Inclusive, se alguém souber que uma criança está sofrendo algum tipo de violação de direitos e deixar de comunicar a autoridade policial, também é um crime previsto na Lei Henry Borel.

MidiaNews – Existem dados sobre o número de casos registrados em Mato Grosso no último ano?

 

Mariell Antonini Dias – Os dados foram apresentados pelo Observatório de Segurança Pública da Sesp, referentes ao período de janeiro a novembro de 2024. Ainda não tivemos a consolidação dos dados de dezembro. Alguns crimes tiveram aumento. Por exemplo, o estupro de vulnerável registrou um crescimento de 8% em 2024, passando de 1.651 para 1.779 casos. O estupro aumentou 3%. A aquisição e transmissão de conteúdo de nudez cresceram 32%. Já a produção, reprodução e fotografia de cenas de sexo explícito ou pornográficas envolvendo crianças ou adolescentes aumentaram 42%. Houve aumentos significativos em 2024. Outros crimes, como o aliciamento de menores, diminuíram 22%, enquanto a prática de ato obsceno teve uma redução de 36%. Precisamos observar esses dados para desenvolver políticas públicas e pensar em mecanismos de trabalho para prevenir essas formas delituosas que estão ocorrendo com maior frequência.

Existem alguns desafios, e o maior deles ocorre quando uma prática libidinosa não deixa vestígios e é cometida contra uma criança de tenra idade, que ainda não fala

 

MidiaNews – Quais são os principais desafios de se investigar crimes sexuais contra menores de idade? A palavra da vítima basta nesses casos?

 

Mariell Antonini Dias –  Existem alguns desafios, e o maior deles ocorre quando uma prática libidinosa não deixa vestígios e é cometida contra uma criança de tenra idade, que ainda não fala. Quando observamos vestígios do crime e a criança ou o adolescente relata a situação, a investigação flui com mais facilidade. A criança é encaminhada ao IML, e contamos com o apoio do estudo médico realizado. A situação se torna mais complexa quando se trata de um ato libidinoso sem vestígios e a criança não fala. Nesses casos, um inquérito é instaurado, mas muitas vezes fica inconclusivo devido à dificuldade probatória. Os crimes de abuso sexual que são comprovados geram condenações. No entanto, pode haver situações de dubiedade ou contradição. Nem sempre uma investigação que começa como abuso sexual é confirmada. Em algumas ocasiões, o responsável legal que faz o registro apresenta dúvidas. Atendemos muitas situações relacionadas à guarda compartilhada, onde surgem suspeitas — como uma criança com assaduras ou ferimentos — e o responsável entende que é melhor investigar.

 

MidiaNews – A tecnologia tem sido usada ou facilitou aos criminosos cometerem esse tipo de crime?

 

Mariell Antonini Dias – Hoje, praticamente toda criança ou adolescente tem acesso à internet. O uso desenfreado de celulares, jogos online, computadores e tablets facilita o acesso dos criminosos a essas vítimas. Precisamos estar vigilantes, pois pessoas com intenção de abordar crianças e adolescentes se valem do anonimato e encontram maior facilidade por meio dessas tecnologias.

 

MidiaNews – Como avalia a legislação brasileira em relação a esse tipo de crime?

 

Mariell Antonini Dias – A legislação brasileira avançou muito. Nos últimos anos, casos emblemáticos em rede nacional fomentaram uma mobilização da sociedade e do Congresso Nacional para melhorar o sistema vigente. Hoje, temos um arcabouço protetivo muito bom para crianças e adolescentes. Há a possibilidade de solicitar medidas de proteção, além de disciplinas específicas sobre o depoimento especial e formas de acolhimento dessas vítimas. Também contamos com conselhos tutelares que acompanham a aplicação dessas medidas. O que sempre precisamos é de aperfeiçoamento — na educação sexual, para vencer o tabu de conversar com as crianças. Isso é responsabilidade de pais, professores e da sociedade como um todo. Ainda temos comarcas e delegacias mais avançadas que outras. Nosso sistema legislativo e de atendimento pode ter um aperfeiçoamento.

 

MidiaNews – Quais os principais sinais que pais ou responsáveis devem observar para evitar esse tipo de abuso?

 

Mariell Antonini Dias – Cada criança e adolescente é de uma forma, e quem convive com sabe o seu comportamento. Quando observar uma mudança é bom ficar atento, buscar um diálogo aberto e acolhedor, sem julgamentos. Uma criança muito expansiva que, de repente se torna retraída, chorosa ou rejeita a aproximação de determinado adulto pode estar mostrando um indicativo de violência sexual.

 

MidiaNews – Tem algum caso que tenha marcado a sua carreira?

 

Mariell Antonini Dias – Tive vários casos que me marcaram. Um caso que aconteceu em Várzea Grande em que um homem ficou conhecido como o ‘maníaco do celular’. Ele utilizava o celular para imputar temor às vítimas e obrigá-las a fazer práticas sexuais que ele queria observar. Durante a investigação, interceptamos telefonemas e comprovamos que ele cometia estupro virtual contra crianças, adolescentes e mulheres adultas em várias cidades do Brasil. 

 

Representamos pela prisão preventiva, o prendemos e, quando o interroguei ele falou: ‘Doutora, sou doente, não posso pegar um celular na mão que eu volto a cometer esse tipo de crime’. Ele usava redes sociais para descobrir informações sobre as vítimas e ameaçá-las. Chegou a obrigar uma adolescente a tomar banho e realizar atos sexuais para ele assistir. Obrigou um adolescente a fazer sexo com a própria mãe. Obrigou crianças a praticar atos sexuais diversos, terríveis. Tivemos o apoio da Diretoria de Inteligência da Polícia Civil, que monitorou as interceptações.

 

 

Outros casos também me marcaram, como o de um pai que abusou sexualmente das duas filhas, ou o de um padrasto que engravidou a enteada de 10 anos. Nesse último, a mãe da criança, que tinha retardo mental, foi mais que conivente, foi coautora por omissão, já que sabia o que acontecia e não fez nada. Ele respondeu por estupro de vulnerável e a mãe por estupro de vulnerável por omissão, as penas nos dois casos são iguais. 

 

Nós da Polícia Civil trabalhamos ativamente no enfrentamento à violência contra crianças. Além da apuração de todas as figuras criminosas, realizamos operações como Caminhos Seguros e Hagnos de combate à violência contra crianças, inclusive, violência sexual infantil. Um trabalho muito importante que realizamos são as palestras nas escolas, trazendo essas informações para os alunos.  

 



Mídia News