MidiaNews | Anamaria
O ano é 1973, primeiro dia de carnaval. Às três da tarde saio de casa para encontrar os amigos no Bar Internacional, tradicional reduto de boêmios localizado no centro da cidade, no térreo do velho e charmoso prédio do antigo IAPC, na Avenida Getúlio Vargas. Jovens, gostávamos de frequentar o lugar, um bar acolhedor, mesas sempre cheias, pessoas em conversas animadas, o envolvente clima etílico decerto favorizava o ver, ouvir, interagir, à boemia cuiabana.
Ponto estratégico da geometria urbana, diante de suas calçadas tudo passava, em todas as direções: blocos carnavalescos, desfile de corsos, o ir e vir de mascarados, o entra e sai de pessoas. Naquele bar, na gostosa companhia dos amigos, falávamos de sonhos e liberdades, em divertida concentração, às performances de logo mais à noite no Clube Dom Bosco.
Chego ao clube pelas 11 da noite; antes passara em casa para um banho e rápida soneca, encontro-me sóbrio, subo as escadas do hall de entrada, ouço a orquestra e sinto a euforia reinante. Passo em frente ao bar, caminho até o salão, muita animação e alegria, belas fantasias, uma enormidade de garotas lindas, cumprimento pessoas, troco palavras com amigos, há cheiro de lança-perfume no ar. Resolvo ir até o bar buscar uma cuba-libre, não há clima para sobriedade.
O bar encontra-se lotado, difícil ser atendido. Ao sair eu a vejo, sozinha no corredor, à beira da escada que leva às piscinas. Não sei o que primeiro me despertou a atenção, os traços delicados do rosto, o pequeno nariz arrebitado, o discreto sorriso, quem sabe, o singelo arranjo de flores sobre o cabelo – ou seria o belo sarongue verde com múltiplos desenhos, quadriláteros convexos, em branco? Aproximo-me, sou recebido de forma simpática, começamos a conversar, procuro controlar o desmedido entusiasmo, a noite começa agora.
Dia seguinte acordo tarde, não me lembro de ter sonhado, mas Anamaria não me sai da cabeça
Chama-se Anamaria. Vieram visitar o pai, ela e o irmão, que está a trabalho em Cuiabá, é carioca do Grajaú, adora praia, após a separação dos pais, mora com a mãe em Ipanema. Hoje foram conhecer Chapada, passaram o dia, encantou-se com as belezas que viu, amanhã o pai os leva ao Pantanal. Ah, doce jeito carioca, sou todo olhos e ouvidos, comenta que faz jornalismo, que gosta de literatura.
Nesse momento já estamos fora do salão, ao lado da piscina, há muito abandonei a cuba e a acompanho no refrigerante. Está a me falar de poetas, que gosta de João Cabral, ama também a métrica, rima. Digo que ritmo e sonoridade me emocionam, nada sei sobre métrica e, de repente, ela se põe a me explicar a contagem das sílabas poéticas, diferente das gramaticais… o irmão chega, segunda vez, para avisar que estão saindo. Combinamos de nos encontrar amanhã.
Dia seguinte acordo tarde, não me lembro de ter sonhado, mas Anamaria não me sai da cabeça. Tiro o carro da garagem, dirijo-me ao Centro, na Av. da Prainha; ao buscar a Getúlio Vargas, o sinal fecha, fico retido sobre a pequena ponte do canal. Nesse instante dois sujeitos, do veículo ao lado, começam uma discussão comigo, sentiram-se fechados em trecho anterior da avenida, o clima esquenta, tem início um corpo a corpo.
Nisso passa a polícia, no caminhão tipo “espinha de peixe”, o sargento que chega para nos separar diz “larga que ele é um oficial”. Entendi, mas era tarde; me levaram, eu e o carro, para a delegacia. No fim do dia fui encaminhado à Penitenciária de Cuiabá, na Av. Fernando Corrêa; saí na tarde noite da Quarta-Feira de Cinzas.
Passaram-se décadas, estou em um restaurante no shopping, ao lado do trabalho, onde costumo almoçar. Depois de me servir, saio à procura de mesa, ao meu lado passa uma mulher, nossos olhares se cruzam, cumprimento-a, quase pude sentir em seu olhar uma denotada surpresa, pensei; certamente nos conhecemos, não lembro. Enfim sentado, começo a almoçar, a minha cabeça não deixa de pensar naquele rosto, conheço sim, o ato de almoçar torna-se mecânico, a memória trabalha a mil e, subitamente, responde: Anamaria! Deixo a mesa, saio do restaurante, a procuro pelo shopping; tudo em vão.
Eu só queria trocar umas palavras, eventualmente a convidar para um jantar. Então me senti triste, talvez nem se lembrasse de mim, por mais esforço que fizesse.
Paulo Modesto Filho é engenheiro civil.