MidiaNews | Licitações e contratos
Recentes acontecimentos fáticos revelaram um alarmante estado de má-conservação de obras públicas no Brasil. Leia-se, obras teoricamente prontas e que, supostamente, contemplariam os pressupostos necessários ao atendimento do interesse público.
Desastres estruturantes, como o que ocorreu na ponte ligando os estados do Maranhão e Tocantins, são retratos de má conservação do que “já foi feito”, sendo certo que, possivelmente, outros infortúnios podem surgir e, por vezes, acompanhados de perdas humanas. Os dados do próprio Poder Público atestam a flacidez das obras públicas no Brasil.
Ocorre que, malgrado o problema já existir, tantos outros lhe sucedem, notadamente no que diz respeito ao modo de reparar o que já foi perdido ou o que não foi suficientemente bem feito. E daí surge uma indagação: o que pode e o que deve ser feito?
As respostas, se objetivamente pudessem ser resolvidas, tratariam de percorrer o séquito do processo licitatório previsto na Lei nº 14.133/2021, obedientemente em cumprimento a todos os requisitos que a mesmíssima legislação impõe: fase preparatória, estudos prévios, vantajosidade, medidas protetivas, análise de riscos, amplitude concorrencial, dentre tantas outras etapas, que culminam com a escolha do licitante vencedor.
Porém, a negligência, em situações como as acima exemplificadas, não encontra termo apenas na catástrofe em si, porquanto avança na burocrática fase antecedente à entrega de uma nova obra pronta e acabada, a qual, satisfatoriamente, atenda ao interesse do administrado consumidor. O temor em contratar na conformidade do que a emergência impõe potencializa ainda mais a aceitável entrega final.
Contratação direta
E tudo isso decorre, dentre tantos outros fatores, do receio em não contratar diretamente (ainda que evidente a emergência calamitosa), apologia que esbarra no hipotético crime de contratação direta ilegal, duramente tipificado no artigo 337-E, do Código Penal Brasileiro, seguido de penalidade substancialmente mais severa.
Distante de qualquer congratulação a condutas criminosas — ou mesmo negligentes, imperitas ou imprudentes (culposas) —, é preciso delimitar uma linha divisória do que já ocorreu (independentemente das injustificáveis razões) daquilo que ainda pode ser feito: o reparo, o refazimento ou alguma outra solução contemplativa.
Se se analisar apenas a legalista forma, menos ofensiva e mais segura ao gestor, haverá uma sobrecarga para o outro lado, fatalmente para aqueles a quem se destinam os serviços prestados. Consequentemente, pondo-se à resolução do problema central, reconstruir, fazer novamente, reparar imediatamente (…), o método mais pragmático — embora óbvio — deságua, necessariamente, na contratação direta.
Partindo do pressuposto de que podem ser firmadas essas balizas, por que não adotar a prática mais concretizável? Qual o racional motivo para estender uma calamidade a um simples capricho de um legislador burocrático?
Parece-nos que o caminho mais aceitável, não necessariamente o mais perfeito, caminha pela trilha da contratação direta prevista no artigo 75, VIII, da Lei nº 14.133/2021, desde que — e este parece ser o ponto mais delicado — qualquer persecução penal esteja alinhada às disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), destacadamente ao que prevê o artigo 20.
Legitimando tal conduta, a própria Lei de Licitações e Contratos Administrativos considera uma solução mais tolerável, que não necessariamente esteja agarrada aos severos trâmites de um processo criminal. Eis, portanto, como interpretação mediana, a contratação direta indevida (artigo 73, da Lei nº 14.133/2021), em dimensão menos drástica que a tipificada como crime de contratação direta ilegal. Talvez, para situações emergenciais, uma suavização a ser ponderada.
Não se trata de estímulo à contratação direta, eliminando o salutar processo licitatório, mas, muito mais, de um dever de avaliação das consequências práticas de uma ou outra decisão, havendo, necessariamente, uma menos danosa. Logo, se a interpretação da contratação direta perpassar, primeira e necessariamente, pelo conteúdo semântico do “indevido”, sem adentrar, antecipadamente, na ilegalidade, tende a haver maior segurança jurídica por parte de quem contrata e de quem é contratado.
Isso porque o legislador foi enfático ao mencionar, no artigo 73, as expressões dolo, fraude ou erro grosseiro, significando dizer que não há responsabilização por presunção. Ausentes tais elementos, menos propícia a desenvoltura que possa ser deferida a uma ação de conteúdo penal.
Assim, nem todo dano ao erário decorrente de contratação direta indevida configura atos de improbidade, práticas de corrupção ou falta funcional aptos a deflagrarem processos específicos neste sentido. Mais que isso, nem toda contratação direta indevida oportuniza a abertura de um processo criminal.
Se assim o é, e considerando ser imprescindível encontrar soluções para graves e urgentes problemas administrativos que ocorrem com maior largueza, a sistemática interpretação do artigo 73, da Lei nº 14.133/2021 pode ser uma alternativa.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo.
Thiago Guterres é procurador do Ministério Público de Contas junto ao TCE-RN.