Brasil tem limitação jurídica para retaliar possíveis ações de Trump
O Brasil tem um conjunto limitado de normas jurídicas para reagir imediatamente a uma eventual imposição de tarifas por parte do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, segundo especialistas e membros do governo Lula ouvidos pela Folha.
O republicano tem ameaçado colocar barreiras a produtos de países que, segundo ele, adotam práticas comerciais injustas. Embora ele tenha sob sua mira principalmente México, Canadá e China -cujas tarifas entram em vigor neste sábado (1º)-, o Brasil e o Brics (grupo do qual o país é membro) já foram citados como possíveis alvos.
Na quinta-feira (30), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que, caso Trump decida sobretaxar produtos brasileiros, o governo responderá com a mesma medida. Ele também afirmou que o presidente dos EUA precisa “respeitar a soberania dos outros países”.
“Se ele [Trump] taxar os produtos brasileiros, haverá reciprocidade do Brasil em taxar os produtos que são exportados [ele se referia aos importados] para os Estados Unidos. Simples, não tem nenhuma dificuldade”, disse.
Um cenário em que o Brasil precise retaliar decisões do americano será complexo, dizem especialistas e assessores de Lula. Para alguns auxiliares, apenas alterações legais dariam ao Executivo a flexibilidade necessária para responder de pronto a uma eventual ofensiva norte-americana.
“O Brasil basicamente internalizou os acordos da OMC [Organização Mundial do Comércio]. Isso se aplica também às controvérsias comerciais. Esses acordos têm como principal ponto que disputas de comércio internacional precisam ser resolvidas no âmbito da OMC”, explica Victor do Prado, ex-diretor do Conselho e do Comitê de Negociações Comerciais da OMC e atualmente membro do Conselho Internacional do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).
Eventual aplicação unilateral de tarifas pelos EUA configuraria uma violação dos compromissos internacionais dos americanos. Nesse caso, se o Brasil quiser responder com uma sobretaxa acima do permitido pela entidade internacional, de 35%, precisaria contestar a ação na própria OMC. O processo poderia se arrastar por anos.
Primeiro, seria necessário recorrer a um painel de especialistas do órgão, que analisa e decide as questões apresentadas na disputa. O prazo mínimo para emissão de um parecer é de seis meses.
Para o caso avançar, o Brasil precisaria ter a confirmação, no todo ou em parte, das alegações apresentadas. Ainda que o país vencesse nessa “primeira instância”, os EUA poderiam contestar a decisão recorrendo ao Órgão de Apelação da OMC –paralisado desde 2019 por obstrução dos EUA–, o que deixaria o caso no “limbo”.
Em seu último mandato, Trump bloqueou a indicação de membros do colegiado que analisa decisões sobre controvérsias. Sem novas nomeações, o Órgão de Apelação não tem o mínimo de três juízes para seguir funcionando.
A paralisia na OMC motivou a aprovação, em 2022, de uma lei que autoriza o Brasil a retaliar outro país após uma decisão de “primeira instância” na organização. A norma foi editada justamente pela inoperância do Órgão de Apelação e tinha em vista disputas comerciais com Índia e Indonésia.
O professor de direito internacional da FGV Rabih Nasser afirma que a OMC prevê uma exceção para a aplicação de tarifas acima do limite autorizado: alegar que a medida é necessária para a preservação da segurança nacional –argumento que tem sido empregado justamente pelos americanos.
“Em tese, o Brasil poderia invocar a mesma exceção que os EUA. O problema é que é um argumento forçado que nos equipararia a eles”, diz Nasser.
Há ainda uma questão de caráter econômico. A pauta de importação dos EUA é composta, na sua maioria, pela indústria de transformação, e especialistas se preocupam com os eventuais impactos econômicos de uma sobretaxa sobre produtos norte-americanos como máquinas e peças.
“Tem o efeito negativo para quem importa no Brasil, o prejuízo que o aumento de tarifa traz para quem importa aqueles produtos. Muitas vezes não faz sentido”, diz Nasser.
Trata-se de um argumento que ressoa no Itamaraty. Em uma das disputas sobre subsídios americanos ao algodão, o Brasil foi autorizado, em 2009, a retaliar produtos dos EUA inclusive de forma cruzada. A medida permitia que o país quebrasse patentes do setor farmacêutico americano, ponto considerado importante para que fosse alcançado um acordo de compensação.
A lei de 2022 abarca os casos de retaliação cruzada, mas exige ao menos uma decisão favorável no painel de especialistas da OMC –o que demandaria tempo.
A advogada Vera Kanas, sócia do escritório especializado em comércio internacional VK Law, avalia que o Brasil se encontra numa encruzilhada: tem um consolidado histórico de priorizar as soluções multilaterais, mas está diante de situações em que a maior potência do globo ameaça ações que desrespeitam o sistema da OMC, por exemplo.
“Estamos passando por uma fase, um mundo, cada vez mais ligado à força. Em algum momento o Brasil vai precisar se posicionar nesse mundo, em que é cada vez mais cada um por si”.