Infecção viral de chikungunya pode causar lesão neurológica
Em um dos maiores surtos de casos de chikungunya já enfrentados por Mato Grosso desde o surgimento da doença, o médico infectologista Abdon Karhawi alertou para os riscos de lesões neurológicas para os infectados pelo vírus.
São vários tipos de sequelas, a depender da agressividade ao sistema nervoso central e periférico
Em entrevista ao MidiaNews, o especialista disse que a doença pode ter consequências que afetam o sistema nervoso e desencadeiam sequelas, embora a mortalidade por chikungunya seja baixa.
“O paciente chega com dor de cabeça, com quadro de convulsão, com perda de consciência, alteração de visão, perda de força nas pernas, no braço e com alteração de sensibilidade.[…] São vários tipos de sequelas, na atividade motora de força, consciência, paraplegia, paraparesia, a depender da agressividade ao sistema nervoso central e periférico”, disse.
Segundo Abdon, os sintomas mais comuns continuam sendo febre, dor de cabeça, dor articular e o rash cutâneo. Ele afirmou ainda que as dores articulares podem se tornar permanentes.
“A dor articular em alguns pacientes pode perdurar anos. É possível que em um grupo menor de pacientes, a doença articular pode ser longa, de meses ou até anos”.
O médico também falou sobre explicações para essa explosão de casos, a conscientização da população para a prevenção ao mosquito transmissor e relembrou sua atuação durante a pandemia de Covid-19, quando foi chamado pelo Governo do Estado para ajudar no enfrentamento da crise.
Confira os principais trechos da entrevista (e a íntegra do vídeo abaixo da matéria):
MidiaNews – Já existe uma explicação para essa explosão de casos de chicungunya em Mato Grosso?
Abdon Karhawi – Sim. A chikungunya é uma doença viral que está relacionada a transmissão por mosquito, principalmente o Aedes Aegypti. O que acontece é que esse mosquito quando fica dentro das áreas urbanas depende de alguns fatores para proliferar, um deles é a água limpa parada.
A falta de cuidado básico em relação a esses recipientes de água parada vão levar a isso [proliferação do mosquito]. Mas não é só isso. Também essas epidemias virais dependem de alguns fatores geográficos, abaixo do Equador a frequência é maior de infecção, tem uma relação com o clima.
Então, não é só o fator da água, que é muito importante obviamente, mas tem fatores climáticos e geográficos que não dependem mais da gente.
MidiaNews – Essa explosão foi uma surpresa para os infectologistas?
Abdon Karhawi – Qualquer endemia, situação de doenças contínuas como a chikungunya, dengue e zika, quando explodem, como está acontecendo agora, deixa todo o serviço de saúde um pouco desamparado.
É um número grande de pacientes e num espaço de tempo curto, então não há serviço de saúde que suporte
Porque requer muito cuidado, muito profissional de saúde, esgota as redes de atendimento, sistema público e privado. A surpresa não é tão grande, porque são doenças que são “desgraças anunciadas”, infelizmente.
Então a gente já sabe há muitos anos, desde que começou com a dengue há mais de 20 anos, quando começou os primeiros surtos aqui em Mato Grosso, que isso podia acontecer. E existem outros problemas que podem ser acarretados que não aconteceram ainda, mas que pode acontecer.
As epidemias fazem um estresse muito grande na rede de atendimento. Então, os PAs, as emergências, as UPAs, as UBS, todos setores que atendem pacientes de maneira aguda, rápida, vão se esgotar. Porque o número de casos, explodem de uma hora para a outra e em poucos dias.
Nós tivemos no final de 2024 e começo de 2025 milhares de casos sendo diagnosticados e precisando da rede de atendimento, da chikungunya principalmente, porque requer um cuidado por causa da dor, da incapacitação que os pacientes desenvolvem. É um número grande de pacientes e num espaço de tempo curto, então não há serviço de saúde que suporte.
MidiaNews – Nas últimas semanas, tem-se ouvido muitos relatos sobre sintomas de pacientes com chicungunya, como inchaço no corpo e até mesmo na língua. A chicungunya de hoje mudou em relação aos anos anteriores?
Abdon Karhawi – Em situações de epidemia, você tem muito paciente, então começa a ter várias manifestações, que eram raras, começando a aparecer com mais frequência. O número aumenta centenas ou milhares de vezes e acaba fazendo com que o aparecimento de casos menos frequentes comece a ocorrer. E, às vezes, casos mais graves.
A manifestação clássica da chikungunya é realmente um quadro agudo de pouco tempo de febre, mal-estar, desconforto e dor articular. A dor articular é um marcador muito importante dessa doença. E, além disso, o rash [erupção] cutâneo, que é uma lesão da pele.
Graças a um número grande de pacientes, você acaba tendo muito doente e outras manifestações que eram menos frequentes. São atípicas e fora do padrão, até neurológicas e em outros órgãos.
As arboviroses têm uma característica de disseminar e não ficar restrita apenas na manifestação de pele, de febre, ou articular. Ela tem manifestações viscerais, como alterações no fígado, baço, neurológicas principalmente.
MidiaNews – As dores decorrentes podem ser permanentes?
Abdon Karhawi – A doença articular é uma das grandes características da chikungunya. Então, se houver uma apresentação clínica muito forte da doença, há a dor articular que chamamos de artrite, que é a inflamação da articulação que limita o movimento.
É possível que em um grupo menor de pacientes, a doença articular pode ser longa, de meses ou até anos
Essa artralgia ou artrite, que são dores e inflamação da articulação, aparecem rapidamente na doença logo nos primeiros dias, e podem perdurar em média duas semanas. Essa é uma característica da maioria dos doentes.
Alguns pacientes acabam evoluindo com uma doença mais sub-aguda para crônica, que começa a ter um tempo mais prolongado de dor, de inflamação articular e até cronicidade de anos. Essas artropatias acabam desenvolvendo alterações inflamatórias que já começam a ficar independentes do próprio vírus.
A dor articular em alguns pacientes pode perdurar anos. A pessoa desenvolveu uma resposta inflamatória por alguma razão e fica com uma artropatia crônica, como acontece na artrite reumatoide. É possível que em um grupo menor de pacientes, a doença articular pode ser longa, de meses ou até anos.
MidiaNews – Um estudo da Unicamp revelou que a chicungunya pode causar danos cerebrais. O que pode acontecer com este paciente cujo cérebro é afetado?
Abdon Karhawi – Infecção viral que tem uma característica de disseminar, muitas delas tem capacidade de fazer lesão neurológica. Na chikungunya, estamos aprendendo isso vendo a descrição de casos que temos observado e avaliado.
O paciente chega com dor de cabeça, com quadro de convulsão, com perda de consciência, alteração de visão, perda de força nas pernas, no braço e com alteração de sensibilidade. Aí o médico vai definir se a doença é mais encefálica, que compromete mais o cérebro ou o encéfalo, que é uma encefalite, se é uma doença específica, se compromete a medula espinhal, o sistema nervoso mais periférico, etc. Algumas são mais graves e outras não.
São vários tipos de sequelas, na atividade motora de força, consciência, paraplegia, paraparesia, a depender da agressividade ao sistema nervoso central e periférico.
MidiaNews – Estas sequelas cerebrais podem levar à morte?
Abdon Karhawi – Podem. É raro ter óbito por chikungunya, é uma doença que a mortalidade é baixa, diferente da epidemia que vivemos há pouco tempo da Covid-19, em que a mortalidade era alta.
Ela mais limita a vida do doente por causa da dor e da inflamação, mas o risco existe e tem relatos de morte por causa da chikungunya, mas é baixo.
Victor Ostetti/MidiaNews
Infectologista em entrevista ao MidiaNews
MidiaNews – Quais os sintomas mais comuns que o senhor tem percebido nos pacientes?
Abdon Karhawi – A mais importante é a síndrome clássica. Febre, dor de cabeça, dor na face e dor articular.
Há também evolução para rash cutâneo, que é o aparecimento de pontos vermelhos no corpo. Essas são as mais características. E tem variações de algumas manifestações.
MidiaNews – Qual o protocolo de atendimento destes pacientes com dano neurológico?
Abdon Karhawi – Quando tem lesão neurológica, tem que ser hospitalizado, mas o caminho depende da análise clínica. Porque se você tem uma doença do nervo periférico é uma coisa, se você tem uma doença do cérebro é outra, se você tem uma doença no tronco encefálico é outra, na medula é outra.
Então, cada abordagem vai seguir um caminho. Mas o paciente tem que ser hospitalizado, mesmo porque o diagnóstico não é fácil.
MidiaNews – Até o início da semana, Mato Grosso havia contabilizado 12 mortes confirmadas e mais 3 suspeitas. Sabe qual o perfil das vítimas de agravamento?
Abdon Karhawi – Doenças virais sistêmicas têm doentes mais propensos a ter complicação. Pacientes com imunossupressão, transplantados, doentes mais idosos, todos eles vão ter potenciais maiores de complicação.
E a complicação da infecção viral desenvolve vários agravamentos naquele paciente. Ele já é, por exemplo, cardiopata, nefropata, já faz diálise, é cardíaco, transplantado, já tem uma limitação clínica, e a chikungunya piora a situação e leva a uma complicação por outro fator que leva à morte.
A consequência de uma infecção é ela debilitar as pessoas, que começam a ter complicações até sua morte.
Ela mais limita a vida do doente por causa da dor e da inflamação, mas o risco existe e tem relatos de morte por causa da chikungunya, mas é baixo
MidiaNews – E por que em alguns casos há o agravamento e outros não?
Abdon Karhawi – A gente não sabe. Muitos estudos de fisiopatologia avalia que um fator de risco é o comprometimento imunitário. Mas esses estudos mais estruturais de entendimento de doença precisam ser levados para a prática clínica.
O Brasil tem vários grupos muito fortes que estudam a fisiopatologia para entender por que a doença é pior em alguns e em outros não. Mas dos estudos para chegar na parte clínica ainda tem um caminho para isso.
MidiaNews – A impressão que se tem é que estamos diante de uma doença grave, mas que as pessoas parecem não ter se dado conta disso, já que continuam permitindo os focos de mosquito. O senhor também pensa assim?
Abdon Karhawi – Infelizmente, pois é uma doença que boa parte dela é prevenível. E a prevenção é individual, não adianta culpar o Governo, minha empresa, meu patrão.
Se cada um fizer esse papel de tentar cuidar dessa questão da proliferação do mosquito, que é a água parada, isso vai ajudar muito. Se cada um fizer sua parte, vai ajudar.
É uma coisa muito cultural e educacional. Não é questão de só tirar o vasinho com água, começa da personalidade e do caráter educacional de cada indivíduo, quando essa pessoa não pensa no outro, ele não vai tirar essa água, pode esquecer.
MidiaNews – Como tem sido a procura por atendimento em seu consultório?
Abdon Karhawi – A procura na rede primária, nos PAs, nas UBS, nas UPAs, está enorme, absurda. Eu não faço atendimento primário, normalmente sou o médico que recebo os doentes referendados.
Mas tenho uma rede grande de colegas médicos que trabalham em rede primária, que estão atendendo de 30, 40, 50 pacientes em seis horas na rede privada e na rede pública tanto quanto a isso. Então é muito grande a procura.
Desde o final do ano passado a procura está contínua, o volume é grande e lembra um pouco quando começou o surto de dengue aqui, há duas décadas.
MidiaNews – O senhor foi um consultor do Governo do Estado na pandemia da Covid-19 e atuou intensamente naquele período. Qual o maior aprendizado que a epidemia lhe deixou?
Abdon Karhawi – A Covid foi um desafio pessoal e mundial. Uma doença que a gente não conhecia nada aparece e tem que aprender rapidamente e tentar fazer o possível.
A gente aprende muita coisa, é difícil até listar, é uma experiência muito grande. O governador na época [Mauro Mendes] me convidou para poder ajudar e a gente fez o possível. Graças a Deus conseguimos superar esse período truculento.
Mas o fato de poder ter participado disso, ajudado objetivamente a controlar essa doença, foi o maior ganho que tive. Isso foi uma coisa importante, poder ajudar o Estado que eu vivo para controlar a doença e passar por ela de uma maneira razoável. Isso foi o mais importante.
Veja a entrevista na íntegra: