Tem dias que chegam a quatro suicídios em Cuiabá; é chocante
Foi vendo o constante aumento no número de atendimentos por tentativas de suicídio, que a médica psiquiatra Olicélia Poncioni, que atua no HMC (Hospital Municipal de Cuiabá), decidiu pesquisar sobre o assunto e chegou a números alarmantes.
O pessoal do IML também falou que nunca viu algo parecido. Tem dia que chegam três, quatro suicídios
Segundo ela, um terço das mortes violentas que ocorrem em Cuiabá é por suicídio. Há dias em que ocorrem até quatro mortes dessa natureza. Ainda, 9 em casa 10 suicídios poderiam ser evitados.
“Na Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, encontrei dados alarmantes que nem eu esperava: um terço das mortes violentas que ocorrem em Cuiabá é por suicídio. No ano de 2024, por exemplo, foram 141 homicídios para 68 suicídios. Teve um ano que foram 108 homicídios para 70 suicídios. É um número extremamente alarmante”, afirmou ela em entrevista ao MidiaNews.
“O pessoal do IML, tenho um primo que trabalha lá, também falou que nunca viu algo parecido. Tem dia que chegam três, quatro suicídios”, acrescentou.
Olicélia Poncioni tem 30 anos de experiência na área e já atuou em todos os setores da rede pública e privada, da atenção básica à UTI.
Na entrevista, ela falou sobre os principais fatores de risco para o suicídio, os desafios na prevenção e apresentou estratégias que podem ser adotadas para enfrentar esse problema de saúde pública.
Confira os principais trechos da entrevista (e a íntegra do vídeo abaixo da matéria):
MidiaNews – A senhora fez um estudo sobre suicídios com dados em atendimentos no Hospital Municipal de Cuiabá. Quais foram os principais achados dessa pesquisa?
Olicélia Poncioni – Atendo no HMC há aproximadamente cinco anos e notamos que o número de tentativas de suicídio aumentou. Fui atrás desses dados quando comecei a atender em torno de três pessoas por dia por tentativas de suicídio. Busquei no IML, mas não encontrei. Na Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, encontrei dados alarmantes que nem eu esperava: um terço das mortes violentas que ocorrem em Cuiabá é por suicídio. No ano de 2024, por exemplo, foram 141 homicídios para 68 suicídios. Teve um ano que foram 108 homicídios para 70 suicídios. É um número extremamente alarmante.
MidiaNews – Quando esses números começaram a subir? A pandemia da Covid-19 influenciou?
Olicélia Poncioni – Os dados da OMS [Organização Mundial da Saúde] são de 2016, infelizmente. Pós-pandemia, houve um aumento crescente, porque as pessoas perderam muitas pessoas, não vivenciaram o luto, perderam trabalho, renda. Em função disso, o número aumentou bastante nesses últimos anos. No consultório, o público é mais grave.
Encontrei dados alarmantes que nem eu esperava: um terço das mortes violentas que ocorrem em Cuiabá é por suicídio
A pessoa que procura o psiquiatra, normalmente, já está com a doença mais avançada. Na época da pandemia e pós-pandemia, a gente viu um aumento de transtornos de ansiedade e depressão. A gente sabe que a depressão é responsável por 70% dos suicídios. Então, como houve um aumento da depressão, também houve um aumento da ideação suicida.
MidiaNews – E os outros 30%?
Olicélia Poncioni – Ficam por conta de outros transtornos, como o uso e abuso de substâncias químicas, transtorno de personalidade borderline, transtorno afetivo bipolar e esquizofrenia. Esses são os principais responsáveis pelos outros 30%.
MidiaNews – Dentre os dados que conseguiu na DHPP, teve algum que mais chamou sua atenção?
Olicélia Poncioni – Fiquei chocada quando conversei com um policial a respeito dos suicídios de janeiro, quando um casal de adolescentes se suicidou, e ele falou que, naquele fim de semana, não foram só os adolescentes, foram cinco suicídios só em Cuiabá. Isso me assustou bastante. Ele falou que a polícia também está extremamente assustada com esses dados.
O pessoal do IML, tenho um primo que trabalha lá, também falou que nunca viu algo parecido. Tem dia que chegam três, quatro suicídios.
MidiaNews – Podemos falar de uma subnotificação dos casos de suicídio?
Olicélia Poncioni – Sim. Com o estigma, há subnotificação. Muitas vezes, a família não quer notificar. Conversei com uma funcionária do Ministério da Saúde e os dados que ela me passou são aquém dos que temos. É preciso um sistema de notificação compulsória para termos os dados reais, porque os do Ministério da Saúde não condizem com a realidade.
Como houve um aumento da depressão, também houve um aumento da ideação suicida.
MidiaNews – Quais são os principais fatores de risco para o suicídio? Existe alguma especificidade em Cuiabá que não exista em outras regiões?
Olicélia Poncioni – São muitos. Quando a gente fala que a principal doença é a depressão, ela é o principal fator de risco. O abuso de substâncias também. Outro fator é rede social. As pessoas se comparam, têm acesso muito fácil a métodos e meios. Está tudo na palma da mão. E a própria comparação com pessoas que aparentam ter uma vida perfeita, felizes, com muitos likes… Isso não ocorre só em Cuiabá, mas no mundo inteiro. Cuiabá não tem um fator de risco mais preponderante.
O que temos no Brasil é a falta de um olhar voltado para esse paciente com transtorno mental. Não temos políticas de saúde pública, não tem psiquiatras nas redes de atenção e nem suficientes para atender.
MidiaNews – Existe um perfil de pessoas com ideação suicida? Há algum fator socioeconômico que interfira?
Olicélia Poncioni – Atinge todas as classes sociais. Na literatura e nos dados da OMS, vemos um número grande de suicídios, por exemplo, entre indígenas e na população maior de 60 anos. Mas o mais alarmante é no adulto jovem, de 14 a 40, 49 anos, essa faixa produtiva da população. Talvez pela cobrança, pela pressão social. Todo mundo está propenso, pode desenvolver um transtorno mental que pode encaminhar para o suicídio se não for tratado.
MidiaNews – Afeta mais homens ou mulheres?
Olicélia Poncioni – Mais mulheres tentam. Mais homens morrem por suicídio. As mulheres tentam mais, mas elas não utilizam métodos tão fatais. Homens, quando tentam suicídio, utilizam métodos letais.
MidiaNews – O estigma impacta a busca por ajuda?
Olicélia Poncioni – Impacta em tudo. A pessoa que busca ajuda, em casa, já é estigmatizada, a própria família hostiliza, acha que é frescura. A religião também interfere. Vemos muitas pessoas falando: “Isso é falta de Deus, é o demônio”. A pessoa sofre preconceito na comunidade onde vive, inclusive nos meios de saúde.
Mais mulheres tentam. Mais homens morrem por suicídio. As mulheres tentam mais, mas elas não utilizam métodos tão fatais
Vemos colegas comentando: “Veio esse aí, diz que é suicídio, mas imagina, se quisesse morrer teria feito tal coisa”. O que chega nas urgências é a ponta do iceberg. Tem muitas pessoas com pensamento suicida, mas só chega aquele que tentou.
MidiaNews – As pessoas que se matam dão sinais de que estão prestes a cometer suicídio?
Olicélia Poncioni – Sim, muitos sinais, seja em casa ou nas redes sociais. Dados da OMS dizem que 9 em cada 10 suicídios poderiam ter sido evitados, porque as pessoas buscam ajuda. Os sinais aparecem em falas, comportamentos, isolamento, falta de interesse pelo que antes gostavam. Muitas vezes, elas dizem que gostariam de dormir para aliviar a dor. Falam coisas como: “Eu não queria morrer, só queria me livrar da dor”; “queria dormir para sempre”.
A depressão causa uma dor tão intensa que, às vezes, a pessoa se corta para mudar o foco da dor. O suicídio acontece quando o paciente não suporta mais. Buscam ajuda no Pronto Atendimento, conversam, choram, falam que a carga está pesada, que querem dormir para fugir do problema, desaparecer. São falas que a família precisa ficar atenta.
MidiaNews – Quais são as lacunas mais críticas no sistema de saúde que precisam ser preenchidas para prevenir suicídios?
Olicélia Poncioni – Essa falha não é só na saúde pública, mas na privada também. As lacunas começam na capacitação da rede básica de saúde. É preciso treinar as equipes para um olhar mais atento. O psicólogo é um profissional essencial nessa rede e deveria ser um serviço de utilidade pública. Todos os postos de saúde, unidades de atendimento, plantões e hospitais deveriam ter psicólogos, o que faria uma grande diferença. Ele pode diagnosticar se o paciente precisa ser encaminhado para um psiquiatra.
Todos da rede deveriam ser capacitados, porque muitas vezes, o paciente busca apoio com quem está mais próximo, como um agente de saúde. Precisamos de centros de especialidade médica, onde o psiquiatra possa avaliar a gravidade do paciente.
Na atenção básica, a maioria dos pacientes não toma remédios corretamente. Existem programas de saúde pública onde a medicação é assistida, como no tratamento da tuberculose e da hanseníase. Por que não fazer o mesmo com a saúde mental? Temos medicamentos injetáveis que poderiam garantir adesão ao tratamento. Uma injeção por mês já resolveria o problema, ou a cada 15 dias, dependendo da gravidade.
Tem a atenção terciária, porque o suicídio é uma emergência psiquiátrica. Pacientes com ideação suicida e forte risco de morte tem indicação de internação. Montando essa rede, conseguiremos salvar muitas vidas.
Essa falha não é só na saúde pública, mas na privada também. As lacunas começam na capacitação da rede básica de saúde
MidiaNews – Que medidas imediatas recomendaria aos gestores públicos para reduzir os índices de suicídio na cidade?
Olicélia Poncioni – De imediato, podemos adotar o tratamento injetável. Há medicamentos que, com infusão duas vezes por semana no hospital, tratam bem a ideação suicida e a depressão grave. Isso precisa ser feito agora, para tirar o pensamento suicida da pessoa e, depois, estruturar uma rede de apoio. O paciente precisa sair do atendimento já com um agendamento para acompanhamento.
Temos medidas que podem ser tomadas rapidamente e que têm custo baixo. O tratamento não é caro. O que pode encarecer um pouco são os recursos humanos e o espaço físico, mas os medicamentos em si são baratos.
MidiaNews – Qual o impacto dos casos de depressão e ideação suicida para o Estado? Há impacto para o INSS, por exemplo?
Olicélia Poncioni – Sim. Não só na minha pesquisa, mas em dados da OMS, os adultos jovens são os que mais se suicidam. O impacto é grande, porque essa é a população produtiva. Vi uma reportagem que dizia que o CID-F (transtornos mentais) já superou o CID-M (lesões) como principal motivo de afastamento de pacientes.
E quem paga a conta? O INSS, o governo, a população. Isso encarece a previdência, o paciente afastado deixa de produzir, porque a depressão é uma doença que paralisa. Falar para um paciente com depressão “você consegue, levanta e vai trabalhar” é o mesmo que dizer para um cadeirante “levanta, você consegue andar”. Ele não consegue. Isso afeta diretamente a renda familiar, criando uma bola de neve.
Quem paga a conta, geralmente, é o INSS. A maioria das empresas, no regime CLT, paga apenas os primeiros 15 dias de afastamento. O que se recebe do INSS não é suficiente, mas, somando os valores pagos em afastamentos, o impacto financeiro para o governo é alarmante.
MidiaNews – A senhora disse que as redes sociais são um fator de risco. Elas podem ser usadas para a prevenção também?
Só se fala em suicídio no Setembro Amarelo, mas as pessoas morrem todos os dias
Olicélia Poncioni – Sim. Podemos usar as redes sociais para acolhimento, criando canais para que as pessoas busquem ajuda, como o CVV, mas com profissionais especializados. O CVV é formado por voluntários treinados, mas um canal com profissionais capacitados poderia ser ainda mais eficaz. As redes sociais podem ajudar muito, levando informação de qualidade. O psicólogo pode atender online, desde que o paciente não esteja em risco de vida. Pacientes graves precisam ser encaminhados para hospitais. Mas, para a grande maioria, a internet pode ser um meio de prevenção.
Só se fala em suicídio no Setembro Amarelo, mas as pessoas morrem todos os dias. Dados da OMS de 2016 mostram que, a cada 45 segundos, uma pessoa se suicida no mundo. No Brasil, é a cada 45 minutos. Precisamos falar sobre isso. A população precisa reconhecer os sinais e saber como agir quando alguém demonstra pensamentos suicidas.
MidiaNews – Como é lidar com um tema tão difícil diariamente?
Olicélia Poncioni – É muito difícil. A gente fica impactada e precisa de suporte. Eu tenho acompanhamento psicológico, porque não é fácil. Apesar de tentar separar o trabalho da vida pessoal, muitas vezes, chego exausta em casa, emocionalmente abalada.
Uma decepção. Passei 30 anos na rede pública lutando para melhorar a saúde mental. Me aposentei em 20 de dezembro e fiz uma reflexão: “Não fiz nada. Não vi nada mudar. Está tudo tão ruim ou pior do que quando entrei”. Nada mudou nesses 30 anos. Os gestores entram com muito discurso e vontade, mas quando começam a trabalhar e entendem a realidade já são substituídos.
Os funcionários da saúde também estão doentes e precisam de suporte para lidar com essa carga. Faço meu acompanhamento psicológico, mas não deixa de impactar minha vida. Fiquei extremamente assustada com os dados da DHPP. Isso não pode continuar assim. As pessoas estão doentes e não está tudo bem.
MidiaNews – Qual principal mensagem deixaria?
Olicélia Poncioni – Que as pessoas tenham mais empatia, que olhem para quem está ao seu lado com mais carinho, que se coloquem no lugar do outro. Não critiquem. É muito importante eliminar o preconceito. Psiquiatra não é médico de “louco”. O que menos atendo no consultório são pacientes em surto psicótico. Esses, na verdade, precisam estar internados em hospitais.
Se notar que um colega de trabalho mudou de comportamento, ficou mais quieto, se isola, aproxime-se dele e converse. Faça isso com empatia. Muitas vezes, ele só precisa de alguém que o escute. Isso já faz uma grande diferença. Busquem ajuda profissional. Espero que os serviços públicos consigam oferecer um acolhimento melhor na atenção básica, nos atendimentos de urgência e no acompanhamento contínuo, porque estamos perdendo muitas vidas.
Veja a íntegra da entrevista: