Comércio exterior: Desafio é equilibrar indústria e acordo

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já começa com o desafio de reconstruir as pontes de política externa abaladas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e por Ernesto Araújo, o mais longevo ministro das Relações Exteriores da última gestão.

A promessa do petista de promover uma reindustrialização do país, no entanto, pode entrar em conflito com a ampliação de acordos comerciais -vistos por alguns como potencialmente prejudiciais ao setor. Para especialistas, equilibrá-las será um segundo desafio para o novo governo.

Durante o governo Bolsonaro, o Brasil ficou marcado pelas declarações ofensivas à China, principal parceiro comercial do país, e a piora desconstrução da agenda ambiental -que era, até então, um dos carros-chefe da política externa nacional.

Também caíram mal as rusgas de Bolsonaro com o presidente francês, Emmanuel Macron, seu alinhamento automático ao ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e sua demora em reconhecer a vitória do novo ocupante da Casa Branca, Joe Biden.

Uma das principais vítimas da política externa adotada nos anos mais recentes foi o acordo entre Mercosul e União Europeia, bloqueado pelos europeus, que usaram como justificativa os problemas ambientais.

Para Roberto Dumas, professor de economia internacional do Insper, o governo Lula já tem mandado sinais positivos para o exterior. Um deles é a escolha da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, para integrar a comitiva do Fórum Econômico Mundial, que começa nesta segunda (16) em Davos, na Suíça.

Dumas afirma que a retomada do acordo com a União Europeia precisa ser prioridade para o Brasil, já que o argumento de degradação ambiental deve cair por terra com as sinalizações de Lula e com a volta de Marina à pasta.

“Lula é uma figura conhecida lá fora, só que o trabalho do governo vai ser muito mais árduo agora do que há 20 anos, é preciso reconstruir as pontes que Bolsonaro não cuidou. Do lado do comércio, também pode ser trabalhoso, já que existe uma cartilha não liberal que direciona o discurso petista, e receio que qualquer oferta de acordo seja lida como maléfica por prejudicar a indústria brasileira.”

O coordenador do FGVcnd (Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da Fundação Getulio Vargas), Nelson Marconi, defende que o governo Lula busque acordos que beneficiem o comércio de manufaturados -o que pode ser feito a nível regional por meio do Mercosul. Ele só pondera que os estragos do bolsonarismo na política externa podem ir além do mandato do ex-presidente.

“O comércio internacional é uma briga de foice, mas existe espaço para o Brasil. Há uma predisposição positiva em receber o Lula no exterior, mas a instabilidade política no Brasil, após o ataque à democracia do último domingo, não pode prosperar, ela traria consequências negativas a médio prazo.”

Marconi também considera que o governo Lula pode tentar reeditar a cooperação Sul-Sul -de aproximação comercial e política com o objetivo de desenvolver os países do hemisfério. “Só que o mais importante é fazer comércio com aquilo que interessa ao país. Seria mais interessante fortalecer os fluxos do Mercosul com o hemisfério norte.”

 

Reindustrialização pode vir casada com transferências de tecnologia

O cenário para o comércio internacional nos próximos anos ainda é alvo de incertezas, com o avanço da Covid-19 na China e as dúvidas se o país asiático conseguirá manter taxas firmes de crescimento.

Em 2022, o Brasil exportou o equivalente a US$ 334,46 bilhões (alta de 19,1% em relação ao ano anterior). Já as importações do período somaram US$ 272,7 bilhões (um aumento de 24,3% ante 2021), segundo dados do Mdic (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços).

Como as exportações superaram as importações no período -algo que já vinha ocorrendo nos últimos oito anos-, o país fechou 2022 com saldo positivo de US$ 61,76 bilhões.

A comparação com o período mais rigoroso da pandemia de Covid-19 nos anos anteriores pesou a favor das exportações para China, Estados Unidos e União Europeia.

Elas cresceram 1,2% para a China, com total de US$ 91,06 bilhões; para os Estados Unidos, o aumento foi de 20,2%, totalizando US$ 37,44 bilhões; para União Europeia, somaram US$ 50,82 bilhões (alta de 39,1%).

Apesar de passar por uma grave crise econômica interna, a Argentina também comprou mais do Brasil no ano passado, com as exportações somando US$ 15,35 bilhões (alta de 29,2%). O comércio com o vizinho é importante, sobretudo, para a indústria nacional.

Sobre as perspectivas de assinatura de novos acordos comerciais, o coordenador do Grupo de Pesquisa de Competitividade e Economia Internacional da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), Marcos Lélis, lembra que esses pactos devem ser casados com o tipo de política industrial que o novo governo pretende implementar.

Se Lula busca promover a reindustrialização, faz sentido buscar parcerias que tenham como contrapartida a transferência de tecnologia de países desenvolvidos, por exemplo.

“Mas tudo pode ser facilitado, caso o acordo com a União Europeia comece a andar, mesmo que isso não ocorra na velocidade que o governo gostaria. A Alemanha já deu uma sinalização muito positiva para retomar o financiamento da gestão ambiental, e o país tem um pouco mais de força dentro do bloco.”

Analistas também veem com bons olhos a escolha do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) para comandar o Mdic. Por ser o segundo na hierarquia do governo, seu comando sinaliza que tanto a indústria quanto o comércio exterior devem ter força na atual gestão. Sob Bolsonaro, o Mdic fazia parte do guarda-chuva do superministério da Economia, de Paulo Guedes.

“A reindustrialização é essencial para que o Brasil possa retomar o desenvolvimento sustentável, e para que essa retomada ocorra sob o prisma da justiça social”, disse o vice-presidente e ministro durante a cerimônia de posse no ministério.

“Ter o vice como ministro demonstra valorização da área. Não esperamos nada radical, abrir o país sem arrumar a casa é algo que não vai acontecer, mas podemos avançar no sentido de reduzir custos, com a aprovação de uma reforma tributária”, avalia José Augusto de Castro, presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil).

Ele também ressalta que a guinada na política ambiental, que se aponta com o novo governo, é algo fundamental para que o Brasil recupere sua imagem. “A imagem no governo anterior prejudicava os interesses do país. Com a volta da Noruega ao Fundo Amazônia, as expectativas são positivas.”

O diplomata aposentado José Alfredo Graça Lima avalia que acordos comerciais trazem segurança jurídica, mas “não criam comércio” por si só.

Segundo ele, “concessões tarifárias relevantes” já foram feitas no âmbito do Gatt (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), enquanto bens e serviços sensíveis são excluídos ou mantêm níveis de proteção.

“A proposta [do novo governo] deveria ir no sentido de liberalizar, através de um programa de redução tarifária, e isso acredito que não será feito. Pelo menos não está aparecendo no radar”, afirma Graça Lima, que é vice-presidente do Conselho Curador do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Ele considera que a entrada do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), defendida no governo Bolsonaro, poderia trazer ganhos para o país junto a investidores. A continuidade do processo, contudo, ainda precisa ser analisada pela equipe de Lula.



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