Psicólogo: adultos infantilizados desejam destruir quem os rejeita
A morte a luz do dia do casal Thays Machado, de 44 anos, e William César Moreno, de 30, chocou a Capital na última semana pela brutalidade e premeditação do crime, cometido pelo ex-companheiro da vítima, o empresário Carlos Alberto Gomes Bezerra, de 57.
O MidiaNews conversou com o psicólogo Douglas Amorim, de 35 anos, para ajudar a entender esse caso de relacionamentos que terminam em morte.
Ele não a vê como uma pessoa, a vê como objeto da frustração, um objeto que ele precisa destruir. Ai nasce a misoginia, nasce o feminicídio
Carlos Alberto, que é filho do deputado federal Carlos Bezerra, confessou ter matado o casal alegando uma “descompensa emocional” causada pela diabetes.
De acordo com o profissional, há dois principais fatores como pano de fundo em casos como esse. A estrutura familiar e o machismo sistêmico da sociedade.
“Uma estrutura familiar de não ensinar ou permitir que essa criança lide com frustrações, e também um reforço de uma cultura que é ainda muito machista e centrada no homem e que supervaloriza uma masculinidade predatória”, explicou o profissional.
“Ele não a vê como uma pessoa, a vê como objeto da frustração, um objeto que ele precisa destruir. Aí nasce a misoginia, nasce o feminicídio”, acrescentou.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Por que algumas pessoas não conseguem lidar com a rejeição?
Douglas Amorim – Rejeição tem a ver com a nossa capacidade de lidar com a frustração, com aquilo que é oposto ao que desejamos, oposto ao prazer. Quando estamos crescendo e aprendendo o mundo, nos primeiros anos da infância, achamos que o mundo nos pertence e não entendemos, por exemplo, quando a nossa mãe nos impede de escalar a estante da sala e não nos entrega as coisas na hora que queremos. Aí eu caio no chão, faço birra, porque nessa simbiose não dou conta de lidar com a sensação de perda, de rejeição, de frustração e do não prazer.
Conforme crescemos, ganhamos maturidade emocional, nos desenvolvemos e aprendemos que a gente senta e dá conta daquela frustração, a gente se autorregula emocionalmente para lidar com perdas, lutos e tristezas. Algumas pessoas, no entanto, não passam dessa fase e não se desenvolvem emocionalmente, elas continuam acreditando, sendo reforçadas por ‘N’ questões sociais e ambientais. Elas não desenvolvem essa elasticidade emocional para lidar com perdas, frustrações e rejeições.
A principal questão é essa dificuldade de conexão. São pessoas que você tem uma certa dificuldade de dialogar, de se conectar, de fazer trocas que produzam uma evolução
MidiaNews – Quais são as características de alguém que não sabe lidar com a rejeição?
Douglas Amorim – Dentre os relacionamentos, há alguns sinais que são vermelhos desde o dia 1. Como a pessoa lida com a própria infância é um exemplo disso. Alguém que tem dificuldade em lidar com a rejeição sempre vai se colocar, mesmo em uma fase adulta, como se fosse uma criança ferida. O discurso dela ainda culpabiliza os pais pelas frustrações e, dentro dessas histórias, ela não tem nenhum tipo de redenção. É uma fala arraigada de muita raiva em relação aos pais, sem nenhum tipo de redenção, de evolução.
MidiaNews – Por quais motivos isso pode acontecer?
Douglas Amorim – São pessoas, muitas vezes, que crescem em ambientes em que os pais reforçam esse movimento de não ser frustrado. Então a criança bate o pé e consegue o que quer, ela acaba ficando no centro e comanda todas as coisas da casa. Muitas vezes são criadas por pais que, por trabalharem demais, por estarem muito fora e por sentirem muita culpa, dão tudo financeiramente que essas crianças querem, não ensinam valores de lidar com a perda, com a consequência, de lidar com as suas frustrações, com as suas tristezas.
MidiaNews – Que efeitos essa falta de habilidade pode causar no convívio social dessa pessoa? Como as pessoas que estão no convívio dela podem ser impactadas?
Douglas Amorim – A principal questão é essa dificuldade de conexão. São pessoas que você tem uma certa dificuldade de dialogar, de se conectar, de fazer trocas que produzam uma evolução. São pessoas com respostas muito impulsivas, devido a uma supervalorização do que vão chamar de instinto, impulso. São pessoas que acabam tendo comportamentos violentos, e não necessariamente de violência física, mas de comportamentos pouco pensados, que são mais ligados ao impulso do que à racionalidade. É uma pessoa difícil de conviver porque você não dá conta de dialogar.
MidiaNews – O que a pessoa pode fazer para reverter esse quadro? Ele é um quadro reversível?
Nessa estrutura o homem olha para a mulher como mais um objeto disso, ela é um ‘objeto que me satisfaz’. Se ela não me satisfaz, se ela não me traz o prazer, se ela me traz rejeição, frustração, se ela me traz essa sensação de que eu perdi, eu automaticamente transformo essa rejeição em raiva, em birra
Douglas Amorim – Sim, é um quadro reversível e possível de tratar. Quando a pessoa cria consciência e procura terapia, temos o que chamamos de manejo da raiva, porque raiva todos nós temos, e ela é extremamente produtiva quando bem canalizada. Por exemplo: é um sentimento de raiva que me ajuda a mudar o que não está me agradando, me faz mudar hábitos, por exemplo. A raiva é ruim quando direcionada para a violência. Dentro do consultório, a gente ajuda a fazer o manejo dessa raiva, mas para chegar a isso é necessário haver consciência e desejo.
Falando especificamente desse caso [da Thays Machado], a pessoa que cometeu o assassinato tem 57 anos. Em 57 anos é a primeira vez que comete algo assim, segundo o histórico. Então a gente está falando de uma construção que vem de anos, essa dificuldade de lidar com a frustração, de lidar com o término, com a rejeição, de perder. Então isso foi culminando nesse desfecho terrível. Se ele tivesse feito uma intervenção talvez tivesse conseguido lidar com uma situação como essa, porque essa dificuldade de lidar com a rejeição é cumulativa.
MidiaNews – Existe um perfil de pessoas que não desenvolvem essa habilidade? Isso acontece mais com homens ou mulheres?
Douglas Amorim – Talvez haja um equilíbrio entre os dois, mas quando falamos em situações de violência podemos dizer que os homens têm menor facilidade em lidar com a frustração. Os números nos dizem isso, os feminicídio, os assassinatos, brigas no trânsito, em baladas. Podemos dizer que as mais violentas estão envolvidas com homens. O homem é explosivo, é para fora, e aí que mora o perigo quando a gente fala em violência. As mulheres, quando elas lidam com as frustrações, elas vão lidar de outro jeito, ela é implosiva, vai sofrer para ela, vai ficar mal, vai ficar sem comer, vai se retirar do ciclo de amigos.
MidiaNews – Quando acrescentamos o elemento gênero, como em casos de feminicídio, o que a psicologia diz sobre essa falta de habilidade?
Douglas Amorim – Essas crianças que crescem e se tornam adultos infantilizados, que desenvolveram a habilidade de lidar com frustração, continuam achando que tudo é para elas e por elas. E aquilo que não é, elas disseminam ódio. Então ‘se eu estou me sentindo frustrado a culpa é sua, você precisa sofrer, você não me deu aquilo que eu gostaria’. Nisso, e nos baseando em uma estrutura que ainda é machista, patriarcal, onde o homem fica no centro das coisas, onde há muito pouco tempo foi modificada a legislação [Lei de Feminicídio]… Era ‘justificável’ um homem matar pela honra, ou seja, pela incapacidade de lidar com as emoções e frustrações. Nessa estrutura o homem olha para a mulher como mais um objeto disso, ela é um ‘objeto que me satisfaz’. Se ela não me satisfaz, se ela não me traz o prazer, se ela me traz rejeição, frustração, se ela me traz essa sensação de que eu perdi, eu automaticamente transformo essa rejeição em raiva, em birra. Sabe a criança que vai lá e bate na porta, empurra o pai e a mãe, joga o brinquedo no chão porque está frustrada. Essa é a resposta de raiva e ódio em direção dessa não capacidade de lidar com essa frustração.
Então esse homem crescido vai pensar ‘ela não quer ficar comigo’. Então automaticamente ele não a vê como uma pessoa, a vê como objeto da frustração, um objeto que ele precisa destruir. Aí nasce a misoginia, nasce o feminicídio. Essa expressão passional tem que ser retirada, ela não pode ser uma linguagem aceitável diante de uma situação como essa. É ódio à mulher, é misoginia, é feminicídio, não existe nada de passional nisso.
Então temos dois fatores, uma estrutura familiar de não ensinar ou permitir que essa criança lide com frustrações e também um reforço de uma cultura que é ainda muito machista e centrada no homem e que tudo aquilo que não é violento, essa masculinidade predatória, é ruim, é ser feminilizado, uma cultura que supervaloriza uma masculinidade predatória.
MidiaNews – Por que é prejudicial usar o termo passional para falar em casos de agressão e feminicídio?
Douglas Amorim – O termo relacional seria mais apropriado que o passional. O passional fica ainda muito associado a uma ideia anterior, a de que é justificável emocionalmente uma pessoa se levantar e matar outra porque ela de alguma forma amava essa pessoa, então foi um crime de amor e não existe crime de amor. Então, não existe crime passional nesse sentido.