Psicóloga: “Na cultura machista, homem se acha dono da relação”
A psicóloga Luciana Fontes Kalix, de 44 anos, especialista em saúde mental e micropolíticas de saúde, acredita que mortes como a da advogada Thays Machado, 44, assassinada a tiros pelo seu ex-companheiro em Cuiabá, são resultado de fatores que vão do machismo arraigado a uma falta de proteção do Estado.
Thaysa e o atual namora dela, William César Moreno, 30, foam mortos a tiros quando saíam de um prédio no Bairro Consil no último dia 18.
Quando o homem decide sair de uma relação não há questionamento. Já quando a mulher fala que não quer mais, ele acha que ela já esteja gostando de outra pessoa, que já tenha alguém nesse lugar que era dele
Horas antes de o crime ser cometido a advogada chegou a registrar um boletim de ocorrência denunciando o ex-namorado Caros Alberto Gomes Bezerra, de 57 anos, filho do deputado federal Carlos Bezerra, por ameaças e perseguições.
“Nem com a separação ela conseguiu se manter vida e a Justiça não conseguiu protegê-la. Por isso acho que o problema é intersetorial, todos os tipos de políticas têm que entrar nessa discussão, nessa construção: a educação, a saúde, a assistência social”, afirmou a profissional.
Carlos Alberto, que foi indiciado na sexta-feira (27), confessou ter cometido o crime e alegou ter agido em razão de uma “descompensa emocional” causada pela diabetes. A relação dos dois terminou há cerca de 45 dias.
De acordo com Kalix é a cultura machista e patriarcal o cerne do problema. “O homem ocupa, na cabeça dele e da sociedade em geral, o lugar de dono da relação. Isso nos é passado em termos de saberes culturais desde quando somos crianças”, afirmou.
Nesse cenário o homem age em lugar de dominação em relação à mulher e um exemplo disso, como cita Kalix, é o próprio ato terminar a relação, “poder” que o homem pensa deter por nascimento.
“Quando o homem decide sair de uma relação, não há questionamento. Já quando a mulher fala que não quer mais, ele acha que ela já esteja gostando de outra pessoa, que já tenha alguém nesse lugar que era dele”, explicou.
“O homem que não aceita lidar com o não, com a frustração, tende a achar que ele está sendo trocado, traído. A mulher pode ter terminado há três messes que quando conhecer alguém ele vai falar, ‘tá vendo, já estava com outro’, e se torna uma obsessão”.
Segundo a especialista é esse sentimento de posse e de dominação sobre a mulher, premissa do machismo, que termina por transformar relações em violentas podendo culminar na morte dessa mulher. “O homem tem que parar de achar que ele é dono da mulher, que só ele pode”.
Um perfil narcisista
Apesar de não poder se falar em um perfil de feminicida, pois o crime pode ser cometido em todas as idades e classes socioeconômicas, a especialista alerta para os homens que têm traços de transtorno de personalidade narcisista.
Reprodução
A advogada Thays Machado foi assassinada a tiros pelo ex, Carlos Alberto Gomes Bezerra
“Sabe aquela pessoa que você fala ‘não acredito que ele fez isso’? Narcisistas são manipuladores e vestem uma máscara na sociedade. Na rua ele é uma simpatia de pessoa e só a mulher que está em casa sabe a verdade por trás disso”.
“O perfil é esse, manipuladores perversos. Eles fazem a pessoa sofrer, batem, machucam, torturam psicologicamente”.
Segundo Kalix, apesar de nem todo feminicida ser um narcisista, a possessão e toxicidade dessas relações abusivas e violentas são traços presentes nesse transtorno de personalidade, que podem camuflar um agressor para a sociedade.
Violência e permanência
Kalix explica que são cinco tipos de violências que envolvem esse tipo de relação de abuso, e que a física é apenas uma delas. São elas: a física, a psicológica, a patrimonial, a moral e a sexual – que muitas nem se dão conta que sofrem.
A mulher deve se atentar aos primeiros sinais e buscar ajuda em suas redes de apoio, sejam elas família, amigos, trabalho ou serviços públicos de assistência.
“Ela tende a achar que pode mudá-lo, que aquilo é só porque ele bebeu e vai passar e, então, ela esconde isso. Muitas vezes ela se isola por medo de descobrirem, medo do que pode vir a acontecer, por vergonha, por culpa”, explicou.
Segundo a especialista, o efeito de uma relação como essa é de adoecimento físico e mental para a vítima.
“Tem recorrência de transtorno de ansiedade, pânico, depressão. Ela pode vir a desenvolver doenças psicossomáticas e doenças autoimunes, porque ela vai juntando aquilo e não trata”.
“Meta a colher”
São muitos os fatores que fazem a mulher permanecer em um relacionamento de risco como são os de abuso.
A impressão quando vejo esses casos é de que parece um menino mimado que não sabe ouvir um não
Entre eles estão o medo de que o marido ou namorado cumpra as ameaças feitas nos momentos de explosão, vergonha, a esperança de que o parceiro mude, a falta de apoio de familiares e pessoas próximas, a dependência financeira, pelos filhos e até por questões religiosas.
“Nisso as coisas vão aumentando, a violência é um ciclo e tende a ficar mais grave. Muitas mulheres querem sair da relação, mas o medo de morrer, o risco de rompimento é muito grande e é um medo real porque você viu o que aconteceu [com a Thays]”.
“A impressão quando vejo esses casos é de que parece um menino mimado que não sabe ouvir um não”.
“Então meta a colher sim, se alguma mulher que você conhece sofre agressão, denuncie”.
A solução para o problema, no entanto, segundo a profissional, é complexo e deve ser implantado nos primeiros anos de vida de meninos e meninas.
“É uma reconstrução, porque isso vem de séculos passados. Precisamos criar o menino entendendo que ele tem que tratar mulher bem, que eles têm os mesmos direitos e orientar a menina de que ela tem que ser bem tratada e não a reprimindo”.