“Quando abordados pela Polícia, pitbull se transforma em gatinho”

Cobradores que usam da violência contra devedores se despem da capa da truculência e ficam mansos quando são levados para prestar depoimento na Polícia. A revelação é do delegado Guilherme Bertoli, titular da Delegacia de Roubos e Furtos de Cuiabá (Derf).

 

Ele é o responsável por investigar grupos de criminosos que agridem e ameaçam pessoas que devem agiotas em Cuiabá. Em vídeo divulgado nas redes sociais, um desses grupos aparece chicoteando um rapaz, em plena luz do dia, na Avenida Miguel Sutil. Dois dos criminosos já estão presos.

 

“É muito fácil para o grupo criminoso, que anda em cinco ou seis cobradores, abordarem a vítima e fazerem extorsão de quem está numa situação de vulnerabilidade e praticar a agressão. Mas quando são abordados pela Polícia, em que o Estado se mostra presente, vemos que o ‘pitbull’ se transforma num gatinho”, disse ao MidiaNews.

 

Quando são abordados pela Polícia, em que o Estado se mostra presente, vemos que o ‘pitbull’ se transforma num gatinho

Segundo Bertoli, há ao menos dois grupos de cobradores de agiotas já identificados pela especializada em Cuiabá. Ocorre que, por vezes, essa cobrança também é feita por pessoas de outros estados. “Eles acham que têm o direito de cobrar”, disse.

 

O delegado ainda explicou que, por conta da publicidade dos casos, a ação dos “cobradores do chicote” tem diminuído na Capital.

 

“Nós verificamos que já estancou essa forma de cobrança violenta. E muitos criminosos que estão sendo investigados e aparecem nos vídeos estão receosos de uma ação da polícia”, disse.

 

Confira os principais trechos da entrevista:

 

MidiaNews – O que a Polícia já sabe sobre essa quadrilha de agiotagem aqui em Cuiabá? 

 

Guilherme Bertoli – Nós temos identificados alguns cobradores, que agem em todo o território do Mato Grosso e em outros estados da Federação. E tiveram grande repercussão essas cobranças, tendo em vista os vídeos que vazaram, que eram gravados pelos próprios criminosos, com as vítimas sendo chicoteadas e ameaçadas. 

 

Uma dessas vítimas foi ameaçada, durante alguns meses do ano passado, procurou a delegacia de polícia, e foi possível iniciar uma investigação. A gente logrou êxito em representar pela prisão e cumprimos a prisão em relação aos dois criminosos.

 

MidiaNews – Essa vítima por acaso é a doméstica que pegou R$ 2,8 mil emprestados, pagou um alto valor e passou a dever R$ 28 mil?

 

Guilherme Bertoli – Isso. Ela pegou um empréstimo, tinha pago aproximadamente R$ 28 mil, não davam quitação e continuavam perseguindo ela, ameaçando. Então, quando ela não aguentou mais, procurou a Polícia e foi atendida. O delegado Luiz Felipe Leone foi o responsável pela investigação e representou pela prisão preventiva dos suspeitos.

 

MidiaNews – E como que a Polícia age no caso, por exemplo, dessa mulher? Dá algum tipo de proteção ou a proteção em si é a própria investigação?

 

Guilherme Bertoli – A proteção em si é o próprio Estado que oferece, investigando os fatos, representando pela prisão e o criminoso sendo punido posteriormente pelo Poder Judiciário. Essa é a proteção que a gente pode fornecer: cessar essa agressão, essa perseguição, através da atuação policial, no caso com a prisão, outras medidas diversas da prisão.

 

MidiaNews – Quando ela fez a denúncia, apresentou algum vídeo ou as mídias foram colhidas ao longo da investigação?

 

MidiaNews

Guilherme Bertoli

Delegado Guilherme Bertoli, que investiga grupos criminosos

Guilherme Bertoli – Assim que ela veio à delegacia, apresentou diversas conversas de whatsapp e áudios em que ele ameaçava ela constantemente. Em uma das situação ele foi com um grupo de comparsas até a casa dela ameaçá-la. Foi quando a filha dela, corajosamente, gravou a ação dos criminosos. Isso possibilitou a gente identificar outros criminosos, não apenas aquele titular do áudio.

 

MidiaNews – O senhor pode dar detalhes? 

 

Guilherme Bertoli – Essa vítima pegou uma quantia emprestada diretamente do agiota e ele cobrou durante um certo período uma quantidade, um juros abusivo, que chegou na quantia de R$ 28 mil. 

 

Nessa atuação específica, o comparsa dele e ele perturbavam a vítima através de ameaças, até de morte. E ela, já temendo pela própria vida, acabava pagando. Ela procurou a polícia e informou os familiares quando já não tinha mais condições de arcar com cobrança abusiva e suportar a agressão psicológica.

 

Nesse caso, ela forneceu os elementos que comprovaram tanto a materialidade contra a autoria, ela trouxe até a polícia os áudios e os vídeos das perseguições. Mas também tem outras cobranças sendo investigadas através de outros cobradores que foi possível verificar a prática de violência extrema.

 

MidiaNews – O senhor chegou a falar que esses agressores atuam a mando de terceiros.

 

Guilherme Bertoli – Nesse modo de cobrança, conforme estão nos vídeos, com exceção do caso dessa senhora que quem emprestou o dinheiro foi o agiota que estava cobrando, eles atuam de forma comissionada.

 

As pessoas que têm um credor, que têm uma dívida através de um contrato e que o devedor não pagou, eles procuram os cobradores oferecendo uma comissão de 30%. Eles atuam para receber 30% do valor da dívida. Como os juros são exorbitantes, a prática criminosa é rentável para eles.

 

Eles viajam vários estados fazendo cobrança, não só Mato Grosso. 

 

MidiaNews – Sabe-se mais ou menos quantos grupos atuam aqui? 

 

Esses grupos se conhecem, já chegaram a realizar cobranças em conjunto. Mas, em certo momento,  acabaram apartando um dos outros

Guilherme Bertoli São vários grupos, inclusive grupos de fora, cobradores de fora que vem aqui e cobradores de Mato Grosso que atuam em outros estados. Nessas situações que estão sendo divulgadas, identificamos dois grupos distintos. 

 

Mas esses grupos se conhecem, já chegaram a realizar cobranças em conjunto. Mas em certo momento, por um grupo não concordar com a forma de trabalho do outro, acabaram apartando um dos outros. 

 

Uma coisa que é importante dizer. Nós, a polícia, sabemos que muitas pessoas que são devedoras são criminosas também. Elas contraem essa dívida de forma fraudulenta, até praticando um possível crime de estelionato. Só que esses credores, cientes dessa situação, poderia procurar a polícia, registrar um boletim de ocorrência, talvez até pela prática de estelionato, para que o Estado, a polícia, pudesse punir. 

 

Nós sabemos que algumas pessoas que pegaram dinheiro emprestado e estão sendo cobradas, são pessoas que são vítimas de extorsão, mas já foram autores de crimes de estelionato, por exemplo. 

 

Só que para a polícia poder atuar, a vítima do estelionato ou de outro crime,  tem que procurar a polícia e informar a ocorrência desse prejuízo. A polícia sabe da conversa que acontece, só que no sistema não tem BO registrado contra esse devedor. 

MidiaNews –  E qual a orientação?

 

Guilherme Bertoli – Quando a pessoa que ofereceu um crédito verificou que a pessoa que contraiu praticou um crime, de forma fraudulenta, já com a intenção de não pagar, ela tem que procurar a polícia e os órgãos do estado para que seja realizada a investigação.

 

Mas o que a gente percebe é que tem um descrédito por parte dessa pessoa em relação à Justiça, e eles acabam buscando justiceiros, que são esses criminosos. Vemos a atuação desses criminosos que chega até a ser cômico, se não fosse real. É uma atuação totalmente atrapalhada. 

 

MidiaNews – Uma das agressões a um devedor ocorreu na Miguel Sutil, quase em frente ao Big Lar. E tudo filmado. Isso é a certeza da impunidade? 

 

MidiaNews

Guilherme Bertoli

“Quem está cobrando acha que não está praticando crime, eles acham que têm o direito de cobrar”

Guilherme Bertoli – Quem está cobrando acha que não está praticando crime, eles acham que têm o direito de cobrar. Na verdade, se a cobrança for realizada de forma legítima, sem uso de violência ou grave ameaça, não configuro o crime de extorsão. 

 

Mas a sensação de impunidade e a covardia deles é tamanha que chegam a filmar e com isso fortalece a materialidade do crime e a autoria. 

 

Eles acham que é um Estado sem lei para agir dessa forma, e nós não somos um Estado sem lei, as leis são duras. Com a corajosa denúncia de uma das vítimas, que foi aquela senhora que estava sendo extorquida, outras vítimas apareceram…  Mas os criminosos agem acreditando nesse manto da impunidade e na verdade não é isso que tem acontecido. 

 

MidiaNews – E tem aparecido mais casos?

 

Guilherme Bertoli – Com a prisão do primeiro criminoso e do comparsa, vários cobradores, que estão inclusive nos vídeos, têm procurado a delegacia querendo esclarecer os fatos.

 

Nós já vimos que a cobrança de forma criminosa, através da extorsão, cessou, porque eles estão com receio, viram que não vigora a impunidade e que eles vão ser punidos. Só que como eu falei, para eles serem punidos nós também precisamos que a vítima colabore.

 

MidiaNews – E essas filmagens são mandadas para onde e para quem? É para provar para o credor que foi feito de fato a cobrança? 

 

Guilherme Bertoli – Exatamente. A filmagem pelos próprios criminosos, da ação truculenta, atrapalhada, provavelmente é enviado para o contratante, para demonstrar que eles estavam executando o trabalho da forma que foi pedida, porque o contratante também está imbuído de uma ira, uma raiva, por não ter recebido e os criminosos acabam filmando para agradar o patrão.

 

É bom ressaltar que a pessoa que tem esse crédito e contrata os cobradores ciente da forma de execução da cobrança responde também pelo crime mais grave na medida da culpabilidade. 

 

Então, se ele contratou um grupo criminoso, ciente que esse grupo utiliza de violência e grave ameaça, aquele que contratou vai responder na prática do mesmo crime.

 

MidiaNews – E como define essas pessoas que usam a força e ameaça para amedrontar pessoas que estão em vulnerabilidade financeira?

 

É um bando desorganizado, covardes, atrapalhado, que desafia o Estado acreditando na impunidade

Guilherme Bertoli – É um bando desorganizado, covardes, atrapalhado, que desafia o Estado acreditando na impunidade. Mas vemos que hoje eles estão com medo e já se arrependeram dessas ações, porque viram que a resposta da Justiça está chegando. As investigações e as prisões estão sendo decretadas e eles irão ser punidos. 

 

MidiaNews – Essas pessoas, normalmente, têm histórico de outros crimes?

 

Guilherme Bertoli – Tem histórico de outros crimes graves, como prática de roubo, prática de extorsão. São pessoas que continuamente têm desafiado a Justiça.

 

MidiaNews – Em uma entrevista para a TV, o senhor falou que esses agressores mudam de comportamento quando são presos, “nem parecem aqueles machões que eram”. Como é essa mudança de perfil?

 

Guilherme Bertoli – É muito fácil para o grupo criminoso, que anda em cinco ou seis cobradores, abordarem a vítima e fazerem extorsão de quem está numa situação de vulnerabilidade e praticar a agressão. Mas quando são abordados pela Polícia em que o Estado se mostra presente, vemos que o ‘pitbull’ se transforma num gatinho.

  

MidiaNews – Há algumas décadas se falou na máfia de cobrança. Ao que parece, ela nunca deixou de atuar, então?

 

Guilherme Bertoli – Eu não sei te informar como era feita, porque estou no estado tem 11 anos. O que posso afirmar com certeza é que são vários grupos de cobradores que agem no estado. A cobrança nunca deixou de existir. 

 

Até porque você cobrar uma dívida não é ilícito, o ilícito é você cobrar da forma que eles têm cobrado: com violência, graves ameaças, perseguições. O crime está nessa ação deles.

 

MidiaNews – E há o crime de agiotagem, que é quando a pessoa cobra juros abusivos.

 

Guilherme Bertoli – A pessoa que empresta dinheiro com juros acima do praticado do mercado, comete um crime contra a economia popular, que é um crime de usura. Mas é um crime de menor potencial ofensivo, que não leva a pena de prisão.

 

Mas a partir do momento que esse agiota coloca cobradores que agem com violência ou grava ameaça, aí surge o crime de extorsão. E o agiota concorre na prática do crime igual aos cobradores. 

 

MidiaNews – Após essa séries de prisões que a Polícia Civil fez,  acredita que conseguiu quebrar essa espinha dorsal dessas quadrilhas?

 

Muitos criminosos que estão sendo investigados e aparecem nos vídeos estão receosos de uma ação da polícia. Eles podem ficar receosos mesmo, porque a resposta do Estado vai chegar até eles

Guilherme Bertoli – Nós verificamos que já estancou essa forma de cobrança violenta. E muitos criminosos que estão sendo investigados e aparecem nos vídeos estão receosos de uma ação da polícia. Eles podem ficar receosos mesmo, porque a resposta do Estado, da polícia, do Poder Judiciário e do Ministério Público vai chegar até eles. Eles vão ser responsabilizados por esses crimes graves. 

 

MidiaNews – Muitas pessoas não denunciam esses agiotas por medo. A Polícia tem ideia do tamanho da subnotificação que esse crime pode ter?

 

Guilherme Bertoli – Não tem como mensurar essa cifra subnotificada. A gente sabe que é uma prática corriqueira, mas pelo fato da vítima não procurar a polícia, a gente tem ciência de casos esporádicos, casos pontuais. 

 

MidiaNews – Qual o dica pode dar para a população para evitar esse tipo de situação violenta?

 

Guilherme Bertoli – Quando a pessoa contrai um empréstimo fora de uma instituição financeira, o correto é firmar um contrato e com o pagamento das parcelas, ir pegando o recibo daquilo que está sendo pago. Mas se essa pessoa por algum momento for ameaçada, tem que procurar a delegacia para relatar a prática. Até porque isso estanca essa ação criminal em relação a eles.

 

MidiaNews – Essa questão da agiotagem, da usura, tem uma pena muito baixa. Defende lei mais duras?

 

Guilherme Bertoli – Em relação ao crime de extorsão é uma pena alta. A extorsão, na modalidade simples, é de quatro a 10 anos. Se ela for praticada com duas ou mais pessoas com o uso de arma de fogo, tem um aumento considerável da pena, sem prejuízo do concurso material de crimes. 

 

Por exemplo, a pessoa está fazendo uma cobrança, desloca até outro localidade e acaba subtraindo o veículo da vítima. Nesse caso, pode configurar o concurso material com um roubo majorado.

 

Então, em relação a esse tipo de ação que tem sido divulgada, a pena é alta. Pelo que eu posso falar da prática, nesses inquéritos que estão em andamento, o judiciário a partir do momento que recebe uma representação da polícia judiciária, prontamente eles têm atendido. A resposta tem acontecido, de forma célere, diante da gravidade dos fatos. 

 

O que nós esperamos é que com essa divulgação, das imagens, do trabalho da polícia, que tem sido um trabalho exitoso, do respaldo que o Judiciário e o Ministério Público tem dado para o trabalho da polícia em relação às vítimas, é que novas vítimas deem crédito para a atuação estatal, porque nós vamos instaurar as investigações e os criminosos serão punidos. 

 

MidiaNews – E a respeito dos dois homens presos, já concluiu o inquérito? 

 

Guilherme Bertoli – O inquérito ainda está em fase final, não foi concluído, e eles serão indiciados, a princípio, pelo o crime de extorsão com a causa de aumento de pena, porque praticado com dois ou mais comparsas. E no final do inquérito, iremos analisar os crimes praticados além de extorsão. 

 

 

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