MidiaNews | Em nome da bíblia
De matérias que li há alguns dias em Carta Capital, duas me motivaram a escrever este artigo: uma é do dia 16; a outra é do dia 18 deste mês, embora o Intercept Brasil tenha sido a fonte para as publicações da Carta.
Pela cronologia desses trabalhos, ficamos sabendo, primeiro, que o pastor estadunidense Douglas Wilson virá ao Brasil para o Congresso Evangélico Consciência Cristã, a ser realizado durante o feriado de carnaval em Campina Grande-PB; depois, que a organização do referido evento cancelou aquele convite, sob a justificativa de haver “riscos de ‘crimes de ódio’ contra os participantes e o palestrante convidado”.
Mas por quais motivos existiriam tais riscos?
Em resposta direta, o referido pastor é expoente da extrema direita nos EUA; ou seja, a quem tem noção do que isso significa, a informação se basta. Do contrário, nenhum argumento parece que poderia reverter a visão limitada de tantos seres contemporâneos.
Seja como for, avalio ser necessário reproduzir o cerne do pensamento daquele “religioso”, para, depois, considerar sobre a centralidade de seu desconvite.
A bem dos créditos, as afirmações que aqui trago sobre o pastor Wilson são transcrições da denúncia de Ronilso Pacheco (teólogo e pesquisador do tema “religiões”) ao já mencionado Intercept Brasil ( acerca da atuação político/religiosa de Douglas Wilson. Em suma, Pacheco afirma que Wilson “é defensor de grupos supremacistas”, como a Ku Klux Klan; logo, não se constrange em usar a Bíblia para apoiar a escravidão em nome da absurda ideia de superioridade branca.
Ao saber disso, como cidadão, fui contemplado pelo desconvite que a organização do evento evangélico se viu forçada a fazer, embora eu duvidasse de que qualquer tipo de “crime de ódio” pudesse ser materializado, caso o convite tivesse sido mantido.
Mas, independentemente de tudo, por mais incômodo que seja, saibamos que esse pastor não é o primeiro a usar a Bíblia para justificar barbáries, como a escravidão. Muita gente “boa” ainda faz isso. Por aqui, no período colonial, jesuítas trilharam por tortuosas e parecidas veredas.
Dada a relevância da questão, não é justo – e é limitador – que apenas poucos de nossos intelectuais façam o trabalho de relembrar tais posicionamentos ocorridos em nossa história. Em minha opinião, a pouca abrangência e/ou adesão do enfrentamento de tópicos que tocam questões religiosas (ou seus “legítimos” representantes), por mais absurdo que pareça, se dá muito por conta daquele “medo de ir para o inferno”, tão bem traduzido e sintetizado em versos do poema “O padre passa na rua” de Drummond.
Dos poucos intelectuais que até agora enfrentaram essa questão, com a elegância acadêmica que sempre lhe foi marca, cito o magistral trabalho Dialética da Colonização de Alfredo Bosi, em especial o capítulo “Vieira ou a Cruz da Desigualdade”.
Do Padre Antônio Vieira, muito se pode dizer; e o que dele for dito deve partir de tópicos de seu contexto histórico (séc. XVII), tão mercantil quanto escravocrata. A isso se devem juntar dados de sua biografia, como a de ter sido conselheiro de reis, confessor de rainhas, preceptor de príncipes, diplomata e defensor de cristãos-novos.
Essa “salada” de atividades sociais – nada compatível com o sacerdócio – tem reflexo direto em sua produção literária, com destaque aos seus sermões.
Por isso, mesmo não ignorando a crueldade da escravidão, aliás, com um pensamento que chegou a antecipar palavras deveras pertinentes de Marx sobre a crueza do trabalho escravo, Vieira, em uma de suas contradições, “reproduz”, no Sermão XXVII do Rosário, com base em Lucas 12: 37, que “Bem-aventurados (são) aqueles escravos a quem o Senhor no fim da vida achar que foram vigilantes em fazer a sua obrigação”.
Pior. Dessa transcrição, Bosi chama a atenção do leitor ao frisar que, no original bíblico, o versículo é encerrado na palavra “vigilantes”. Logo, de minha parte, pondero que o que vem após – “em fazer a sua obrigação” – pode estar revelando uma compreensão própria do orador católico dos setecentos; e essa manipulação no texto bíblico é desconcertante. Não seria isso um tipo de pecado mortal, na visão religiosa?
Outro desconcerto refere-se à escravidão dos indígenas. Se sobre a dos africanos, a Igreja Católica se silenciou, ou falou muito baixo, ela não se omitiu acerca da servidão dos indígenas. Na Bula “Sublimis Deus”, emitida por Paulo III, em 1537, de amplo conhecimento do meio eclesiástico, a Igreja foi enfática em proibir aquela prática.
Dessa bula papal, resumo o que Bosi transcreveu no capítulo já citado: “…decretamos e declaramos com nossa autoridade apostólica que os referidos índios e os demais povos que daqui por diante venham ao conhecimento dos cristãos… são dotados de liberdade e não devem ser privados dela, nem do domínio de suas cousas… que podem usar, possuir e gozar livremente dessa liberdade e deste domínio, nem devem ser reduzidos à escravidão…”
Contudo, como lembra o mesmo professor Bosi, “esse ideal fora abandonado pelo compromisso político dos padres de ‘descer’ com os portugueses ao sertão, domesticar e reduzir os indígenas à obediência…”, fazendo-os “trabalharem a metade do ano nas roças dos colonos” de Belém do Pará e de São Luís do Maranhão.
Após essas considerações, que sequer levaram em conta o peso da escravidão do plano ideológico de africanos e indígenas, não sem lamentar por tudo, o fato é que a respeito do pastor Wilson se pode comprovar seu pensamento como o de um supremacista; contudo, jamais se poderá dizer o mesmo de Vieira.
No limite, por mais comprometedoras (e constrangedoras) que sejam, resta-nos apontar as contradições internas em alguns de seus sermões, paradoxalmente, todos brilhantes. Desses apontamentos, outras e profundas reflexões/revisões históricas podem e devem ser feitas.
Roberto Boaventura da Silva Sá é Dr. em Ciências da Comunicação/USP.