O Velho Machão no Século XXI

Ontem briguei com minha mulher. Briguei mesmo! Também não era pra menos! Cheguei em casa com fome e a encontrei fazendo alguma coisa muito atraente, que de imediato, não consegui identificar. Peguei uma colher pra experimentar a iguaria e ela ralhou comigo. Vocês sabem o que é ralhar? Acho que hoje se usa mais estressar. É quase a mesma coisa, embora ralhar seja mais bonito que estressar, vocês não acham?

 

Aí eu fiquei muito zangado e falei pra ela, assim na cara limpa, olho no olho: você é muito má. Ela fez que não ouviu e continuou mexendo a panela. Então dei espaço pra minha macheza e continuei: maldosa! mesquinha! E outros adjetivos semelhantes.

 

Pra evitar mais confusão, porque sei que quando me exaltado posso ser imprevisível, saí da cozinha e bati a porta com força. Bati mesmo! Eu sou muito ruim quando me enfezo!  Mesmo assim, com tanta demonstração de força, não me dei por satisfeito, abri de novo a porta e pondo a cabeça pra dentro da cozinha falei quase gritando: crudelíssima!

 

Ela parou de mexer a panela, olhou pra minha cara que estava do lado de dentro da cozinha, e às gargalhadas falou: crudelíssima??? ha,ha,ha, essa é boa! E fechando a carranca: Vá se f*. Você e seu vocabulário do século passado.

 

Aí a casa caiu. Fiquei bravo, bravo de verdade!  Comigo mesmo, claro. Como pude me exceder tanto e descontrolar-me a ponto de chamá-la de má?  Onde se viu isto? Assim, sem mais nem menos, só por conta de um guisado (alguém sabe o que é isso?)? Ainda mais, qualificar tão rudemente, com superlativos agressivos, uma esposa de mais de 40 anos de vida comum?

 

Sabe o que ela estava fazendo?  Uma polenta. Dessas com carne e caldo de galinha, não desses caldos comprados em supermercado, mas daquele feito das partes nobres do frango com horas de paciencioso cozimento e adição regrada de água no tempo certo.

 

Como no caso bíblico de Esaú, que comprou o prato de sopa do irmão Jacó por um preço absurdo, eu estava disposto a pagar muito (metaforicamente) por parte da polenta com filé e caldo de galinha que fervia no fogão. Só que ela tinha dono e não estava disponível: era um presente pra Baby, que fazia dez anos.

 

Pois é, a polenta feita com tanto esmero, não era para o bico dos humanos, estava reservada para a festa das cachorrinhas, Baby e Mel, que mandam e desmandam aqui em casa. A minha janta – requentamento do almoço – estava na geladeira, bastava levar ao micro-ondas. Fiz isto, depois do “parabéns a você”, que emocionado ajudei a cantar, enquanto as cadelinhas comiam o mimo inesperado. 

 

Voltando à Bíblia: “Não é lícito tirar o pão dos filhos para lançá-lo aos cachorrinhos”, disse Jesus para a mulher samaritana.  Só que os tempos são outros e as prioridades também. O versículo hoje seria mais ou menos assim: “não é justo dividir com os homens a polenta que é das cachorrinhas”.

 

Renato de Paiva Pereira é empresário e escritor.

                                  



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