MidiaNews | Qual prevalece?
A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu uma consagração tão elevada ao planejamento nas licitações que a proeminência dos mais diversos dispositivos legais constantes no texto tende, se atendidos na máxima rigorosidade, a dificultar a confecção do próprio instrumento convocatório, inviabilizando as fases posteriores do certame.
Nada obstante o § 2º do artigo 18 apresente uma atenuação ao extensivo rol constante no § 1º, elementos mínimos devam constar no Estudo Técnico Preliminar (ETP) a que faz menção o inciso I do caput do artigo 18. De todos os modos, independentemente da quantidade de elementos e da extensão do rol, há um mínimo a ser seguido.
O aporte maciço a um determinado emblema normativo, fincado em uma fase de planejamento que antevê um “não erro” ou que mitifica um gestor mastodôntico, é, pelo próprio decurso do tempo (e da prática) empobrecido ou, suavemente, desobedecido, ainda que a insurgência não seja tão íngreme.
Ilustrativamente, o Tribunal de Contas da União (TCU), em recente julgado (Acórdão 2273/2024-TCU-Plenário, da Relatoria do Ministro Benjamin Zymler), entendeu que a Lei nº 14.133/2021 não obriga a inclusão do ETP como um anexo do instrumento convocatório. Tudo indica já ser um sinal da não tão relevante função do ETP?
À míngua da discussão sobre a obrigatoriedade ou não do ETP, certo é que, conforme redação do § 2º do artigo 18 (acima mencionado), imprescindíveis elementos devem nele estar contidos, dentre os quais cumpre mencionar o inciso XIII do § 1º do artigo 18: “posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina”.
De tal modo, no ETP, a despeito de elencar ou não todos as previsões insertas no § 1º do artigo 18, deve constar um posicionamento conclusivo, sendo que este, anteriormente à publicação do instrumento convocatório (artigo 54, da Lei nº 14.133/2021), passará pela apreciação do órgão de assessoramento jurídico — inteligência do artigo 53, da Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos.
Objetivamente, o posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina pode encontrar uma refração na análise jurídica, a qual, não necessariamente, deve concordar com a solução atingida no ETP e, ainda que com esta não desafine, deve seguir fundamentação que galvanize a metódica de adequação proposta no documento da fase de planejamento.
Isso porque o inciso II do § 1º do artigo 53 assim noticia, ao prenunciar que o órgão de assessoramento jurídico deverá apreciar todos os elementos indispensáveis à contratação (…), sendo, necessariamente, a análise do ETP (e de seus fundamentos) um destes elementos.
Não é suficiente que o jurídico se limite a uma apreciação objetiva do que consta no ETP, isto é, dos elementos que sejam ou não obrigatórios. Se assim fosse, estar-se-ia falando de um procedimento de checklist, obviamente sem qualquer conteúdo de juridicidade referido no artigo 53.
O órgão de assessoramento jurídico deve não apenas discordar, mas, se aderir à fundamentação do ETP, motivar as razões pelas quais — com a exposição dos pressupostos de fato e de direito levados em consideração na análise jurídica — o posicionamento atingido pela equipe do planejamento é a mais adequada.
Exemplificativamente, o ETP pode — e desde que motive —, segundo prevê o inciso VIII do artigo 18 da Lei nº 14.133/2021, entender pelo parcelamento da contratação. Por outro lado, o órgão de assessoramento jurídico, se entender que o parcelamento inviabiliza a concretização da licitação, também se encontra autorizado a discordar, emitindo, igualmente de forma justificada, as razões pelas quais a contratação não deve ser parcelada.
Segregação de funções
Sucede que a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ao menos em três expressas ocasiões, trata sobre a segregação de funções, elevando-a à categoria de princípio. Ou seja, se segregar as atribuições é um princípio, razões existem para que haja um cordial deferimento às funções dos diversos agentes que atuam no processo licitatório e de contratação pública.
Analiticamente, se ambas as motivações forem devidamente fundamentadas, tratar-se-á muito mais de uma escolha (fielmente discricionária) do que realmente de um possível erro suprimido por quem exerce o controle jurídico prévio. Logo, teoricamente, a análise jurídica, se desconsiderados requisitos formais de hipotética estrutura hierárquica, não obrigatoriamente é mais elevada que a solução encontrada no ETP.
Nesse diálogo intuitivamente construído entre os agentes administrativos, é comum o órgão de assessoramento jurídico devolver o processo para que a equipe responsável pela elaboração do ETP melhor justifique a solução adotada como a mais viável para o atendimento da necessidade a que se destina. Neste caso, salvo uma vassala submissão, o melhoramento da motivação tenderá a convencer, contundentemente, o responsável pela opinião jurídica.
Porém, eis o quesito inicial a que faz referência o título do presente artigo: e se o jurídico não se convence, qual fundamento prevalecerá? O que consta no ETP ou o perfilhado pelo controle jurídico interno?
Para essa sutil problemática, o legislador não apresentou uma pacífica solução e, nada obstante o formalismo burocrático aderido, sem maiores ressalvas, pelos exercentes de funções administrativas, deixar de seguir o conteúdo do parecer jurídico não é vedado, desde que haja justificativa para tanto.
Logo, o “SMJ” falecerá se o gestor optar, em pleno e harmônico juízo discricionário que lhe é outorgado, pela motivação prevista no ETP, argumento este que comprova que o parecer jurídico, em específicas situações, não é vinculante, nada obstante sua inquestionável obrigatoriedade de emissão.
E o que prevalece? Um ou outro, desde que motivado. Glória ao ETP, sem as bençãos do jurídico, também tem perdão.
Guilherme Carvalho é doutor em Direito Administrativo.