Gravidez “salva” criança dos abusos sexuais do padrasto
“Cheguei a ser abusada com toalha e travesseiro tampando o meu rosto e toda a família dentro de casa. Ele dizia que se eu contasse para alguém mataria além de mim, todos os que eu amava. Por isso, aguentei calada, sentido dores físicas e psicológicas, provocadas pelo estupro e também pelas surras que ele me dava diariamente. Para muitos podia ser uma desgraça, mas para mim a gravidez, fruto dos abusos, foi a minha salvação”, conta Jaqueline Lechner, 22, que foi estuprada durante seis anos, pelo seu padrasto.
Pelo que Jaqueline consegue se lembrar, o primeiro abuso aconteceu aos seis anos de idade. “Pode ter sido antes, nossa memória é falha. Mas, em minha consciência foi nessa época que tudo começou”.
A jovem morava em uma fazenda com a mãe, três irmãos e o padrasto, no Distrito de Água Fria, em Chapada dos Guimarães. Com a desculpa de que ela era a filha mais velha, todo serviço que o padrasto ia fazer na extensão da área rural, ele a levava para “ajudar”. “Era o momento oportuno para ele fazer o que quisesse comigo. Não adiantava eu chorar ou pedir para parar. Ele não se importava com a minha dor e mandava eu ficar calada, mas mesmo que eu gritasse as chances de alguém me escutar eram poucas, pois não tínhamos vizinho e ele sempre me levava para locais bem longe da casa onde morávamos”.
Segundo Jaqueline, os estupros não tinham hora e nem lugar para acontecer, aconteciam simplesmente quando o padrasto tinha vontade. “Uma vez, uma das minhas irmãs viu ele em cima de mim na cama onde ele dormia com minha mãe e saiu gritando falando que ia contar para todo mundo. Ele mandou eu dar um jeito dela não fazer isso, se não ele faria com ela o que fazia comigo”.
Os diversos abusos ocorreram durante quatro anos seguidos, até que Jaqueline conseguiu uma vaga na escola. As professoras começaram a estranhar seu comportamento, pois era sempre muito calada e não tinha amigas. “Eu tinha raiva das meninas. Eu achava que elas tinham uma infância sadia, brinquedos, amigos, pais que as amavam, tudo contrário ao que eu passava. Na minha opinião, elas eram culpadas por tudo o que eu passava”.
Foi então que as professoras começaram a tentar conversar com Jaqueline e descobrir o motivo dela ser tão diferente. Mas, só dois anos depois que uma delas a viu correndo do padrasto que dirigia um trator, no meio da mata. A professora não a socorreu, mas a cena foi o ponto inicial da investigação promovida pelo Conselho Tutelar local.
Além dos abusos sexuais, Jaqueline apanhava do padrasto todos os dias. “Tudo que ele fazia com a minha mãe, ele fazia comigo. Como ela apanhava dele, comigo não era diferente. Eu chegava com várias marcas pelo corpo, o que era mais um motivo para as professoras desconfiarem”.
Aos 12 anos de idade a barriga de Jaqueline começou a crescer e uma de suas professoras comentou com ela que seu corpo estava mudando. “Eu já estava grávida, mas não tinha ideia do que estava acontecendo. A minha barriga mexia bastante e meu padrasto disse que se falassem alguma coisa, era para falar que estava com lombriga”.
Porém, não tinha como esconder que a jovem, ainda uma criança, estava gerando outra dentro de si. Ligaram da escola, falando que queriam conversar com a mãe e o padrasto de Jaqueline, porque suas notas estavam baixas.
Quando chegaram lá, encontraram a polícia, o conselho tutelar e as professoras, que logo acusaram o padrasto dos abusos. Ele negou piamente, porém, mais tarde o exame de corpo de delito comprovou os estupros, assim como o de DNA provou que o filho que Jaqueline esperava era dele.
O acusado chegou a fugir, para Londrina (PR), mas teve a coragem de ligar para a ex-esposa e pedir a mão de Jaqueline em casamento, dizendo que ia assumir o filho. Ela fingiu aceitar, e quando ele retornou para Chapada dos Guimarães, foi preso.
Atualmente o estuprador de Jaqueline está solto e ela que viveu muito tempo com medo de todos os homens que a olhava, se diz em paz. “Mesmo contra a vontade de todos, tive meu filho, que para mim é uma benção. De repente se eu não engravidasse, até hoje estaria sendo abusada, se não morta. Hoje sou casada, tenho outros dois filhos e vivo bem. Só que não desejo ver esse homem [ex-padrasto] nunca mais”.
Jaqueline diz ainda que, atualmente, as mulheres estão mais dispostas a lutar por seus direitos, mas muitas ainda se calam diante de um abuso sexual. “Cada um tem o seu motivo, seja ele vergonha, dependência, família. Mas sempre que posso conto minha história para que as que passaram pelo mesmo que eu sejam incentivadas a denunciar e não sofrer calada”.
Esta semana, um caso de estupro coletivo comoveu o Brasil. Uma adolescente de 16 anos foi dopada e abusada sexualmente por 33 homens no Rio de Janeiro. Para Jaqueline o crime é considerado nojento e, assim, como os demais precisa de punição aos culpados.
“Se com um a dor foi tamanha que não consigo nem descrever, imagina com 33. Por isso, eu ensino o meu filho a respeitar todas as mulheres que o cerca, para que lá na frente ele não faça com nenhuma delas o que fizeram comigo”.
Para a presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Mato Grosso (CEDM), a defensora Rosana Leite, crimes como estes continuarão acontecendo enquanto a sociedade não se conscientizar que a mulher não é simplesmente um objeto para satisfazer sexualmente o homem que, por sua vez, é hierarquizado como sendo sempre melhor que o sexo oposto.
“Nós precisamos conhecer nossos direitos, saber que desde cantadas e assobios na rua, caso a mulher se sinta ofendida, pode-se judicializar o caso. E esse trabalho tem que ser realizado a partir dos lares, dentro das famílias e se estender para as escolas e todos os ambientes públicos”.
Diante do aumento assustador de estupros acontecendo em todo o Brasil, o CEDM criou a campanha “Chega de Fiu, fiu!”, que visa combater ao assédio sexual em espaços públicos e esclarecer as mulheres e a sociedade em geral sobre seus direitos e como agir desde declarações consideradas ofensivas, até o abuso sexual propriamente dito. (A Gazeta)