David Cronenberg: entre corpos, máquinas e metamorfoses
O primeiro e o último filme do canadense David Cronenberg foram adicionados recentemente ao streaming Mubi, e tanto Stereo de 1969, quanto Crimes do Futuro de 2022, não estão entre os filmes melhor avaliados do diretor, mas estão longe de não mostrar que ali sempre houve um autor. Stereo não parece um filme de Cronenberg: enquadramentos abertos, planos estáticos e uma narração em off para explicar ao espectador quais os procedimentos que acontecem na narrativa. Um grupo de jovens passou por uma operação que tirou a capacidade de fala, então devem chegar ao sexo por meio da telepatia. Não há diálogos nem trilha sonora, o que ouvimos é a narração monotônica que comenta os processos, é com certeza uma boa escapatória para as dificuldades da captação de som direto, mas um problema no sentido de ser um filme além do experimento. Mesmo assim, já mostrava um diretor, ou melhor, um mestre de cena que sabia o valor de seus planos. Stereo é também uma pequena mostra de temas que viriam a ser presentes na filmografia de Cronenberg, como as transformações, o sexo, a violência, a tecnologia e a relação entre corpos.
Dez anos depois, Os Filhos do Medo já mostrava um controle muito maior da encenação e um olhar bem mais perturbador para os atores dentro da própria história. Mas é em 83 que acontece o primeiro grande marco na carreira do diretor: Videodrome. Em suma, o dono de uma pequena emissora de televisão a cabo capta imagens de pessoas torturadas e mortas em uma transmissão chamada Videodrome, um experimento que usa a televisão para alterar permanentemente as percepções das pessoas, causando sérios danos no cérebro. Cáustico e visceral, o filme é quase uma profecia “cronenbergiana” sobre o potencial da tecnologia em nos controlar, e também, uma análise metalinguística e pessimista sobre o próprio cinema.
No mesmo ano, um filme sobre traumas de um corpo: em Na Hora da Zona Morta, o personagem do sempre magistral Christopher Walken acorda de um coma de 5 anos causado por um acidente, e por isso consegue ver o passado, presente e futuro daqueles com quem tem contato físico. Como de costume, há muita violência aqui, como se Cronenberg sempre autoconsciente, falasse que mesmo aquele que tudo vê não é capaz de ver seu próprio tempo. Novamente serve também para o ofício do cineasta que reconhece a realidade mas não pode representá-la em sua totalidade. Para isso, servem à arte as metáforas, e assim como Kafka em Metamorfose – em que Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos e encontrou-se metamorfoseado num inseto monstruoso -, em A Mosca (1986), Cronenberg apresenta a transformação de seu personagem em uma mosca, depois de um acidente em uma máquina de teletransporte. Aqui, ambos se tornam um. Cronenberg adiciona tecnologia ao romance de Kafka e faz o seu filme mais explícito sobre as transformações humanas diante da existência inquietante na pós-modernidade: a degradação é física, ética e psicológica, a ganância corrompe tanto quanto o egocentrismo, e o sexo não é menos doloroso.
Pensar em sexo e Cronenberg é pensar em Crash, de 96. Um entrelaçamento sublime entre prazer e morte, porque se em Videodrome o homem temia a máquina, em Crash ele deseja que ela o atinja, é uma atmosfera perigosa e voyeurista, da mesma forma que observamos a aerodinâmica reluzente dos carros, o impacto também é imediato ao ver a beleza de um casal se relacionando após um acidente quase fatal. Essa é apenas uma das bizarras análises de Cronenberg acerca do alucinante desejo humano, já que em Dead Ringers (1988) um irmão gêmeo quer ser o outro, em Naked Lunch (1991) máquinas de escrever se transformam em insetos, em Mapas para as Estrelas (2014) alguns personagens se atraem por fantasmas e incestos, e em eXistenZ (1999) a realidade se funde com o virtual fazendo os personagens não saberem mais o que é verdade ou videogame, vontade ou sofrimento, aliás, assim como Matrix, é um filme sobre a virada do século.
E no XXI, mais especificamente na primeira década, foram poucos os diretores que entenderam o peso dos atos realizados dentro de uma história, e também o peso dos planos feitos para representá-los. Não que isso seja necessário ao cinema, mas de qualquer forma há um Clint Eastwood, um James Gray, um Pedro Almodóvar, um Jean Godard, um Abel Ferrara, e, é claro, um David Cronenberg a lidarem com marcas, reminiscentes ou imediatas, daquilo que já se deu ou que acabara de acontecer, que sabem o valor de – no meio de tantas mudanças e cóleras – dizer um amém, ou até mesmo um eu te amo. É o que acontece em Marcas da Violência, um Cronenberg menos fantástico (sintoma comum nos seus outros filmes do século), mas ainda pesado, visceral, ainda sobre as representações e transformações inevitáveis do ser humano.
Enfim, depois de todo esse amadurecimento estético e temático, das variadas reinterpretações dos elementos presentes desde seu primeiro filme, chega 2022 e Crimes do Futuro é… decepcionante? Na sinopse, “à medida que a espécie humana se adapta a um ambiente sintético, o corpo sofre novas transformações e mutações. Acompanhado por sua parceira Caprice, o artista performático Saul Tenser mostra a metamorfose de seus órgãos. Enquanto isso, um grupo misterioso tenta usar a notoriedade de Saul para jogar luz sobre a próxima fase da evolução humana.” Numa primeira impressão, quase um resumo da filmografia do diretor, na prática, um Cronenberg não tão cronenbergiano, mais comedido, menos espetacular, com poucos atos realmente grandiosos comparados aos seus outros filmes, o que pode (e nesse caso deve) mesmo ser decepcionante.
Mas porque o que a fotografia de claros e escuros embrulhada por uma trilha sonora que mistura a ópera ao eletrônico esconde é uma autópsia da própria carreira. Crimes do Futuro é sobre o prazer que o cinema, não só o dele, tem em ver tudo (acidentes, insetos, máquinas de escrever, televisões, fantasmas), e principalmente o que não deve ser visto. E faz sentido que no capitalismo já exposto por Cronenberg em Cosmópolis (2012), os artistas tenham que descobrir o novo sexo, seja ele a cirurgia, o voyeurismo, ou o olhar para si mesmo, ainda que morto. E talvez por isso, por mais cronenbergiano que seja ao tratar os corpos à sua maneira e com toda a metalinguagem, seja o menos cronenbergiano, pois fala mais do que mostra.
Porque tudo já fora antes apresentado, mas as mudanças sugerem que ainda há descobertas a serem feitas no cinema e fora dele, e o mais recente filme de Cronenberg evidencia que de 1969 a 2022 ele foi um artista que soube se adaptar sem se desprender do que achava necessário, se metamorfosear sem se render ao fatal existencialismo. Por vezes violento e expositivo, é agora mais contemplativo e sereno. Se os corpos se cortam, se expõem, se entrelaçam, deixe que os faça, deixe que dancem para que, quem queira também possa apreciar. Filme testamento, mas ao bom voyeurista, uma carta de recomendação.