Por que tanto ódio? Uma leitura psicanalítica sobre o racismo
Renata Wirthmann
Especial para o Jornal Opção
Freud, já em 1930, num dos seus mais famosos textos, “mal estar na civilização”, afirmou que “o ser humano não é um ser manso, amável, capaz no máximo de defender-se quando o atacam, mas é lícito atribuir a sua dotação instintiva uma boa quota de agressividade” Por essa disposição pulsional agressiva, continua Freud, o homem pode se satisfazer impondo sobre outro ser humano sua “agressão, explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, de possuí-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dor, martiriza-lo e assassiná-lo”.
A cultura se constrói enlaçada com esse difícil obstáculo pulsional. A psicanálise, por sua vez, desde Freud até hoje, nos permite analisar a condição do sujeito na cultura. Quase 100 anos após esse texto Freudiano temos assistido o século XXI se apresentar marcado pelo fenômeno da violência e seus deslocamentos, como o ódio, a dor, a fúria, a crueldade, a segregação, o racismo e o feminicídio. Eis o que proponho discutir hoje nesse ensaio: sobre os fenômenos de ódio e violência na contemporaneidade.
O termo psicanálise foi criado por Freud em 1896 e estava diretamente relacionado ao desenvolvimento de um novo tipo de tratamento pela fala que visava, a partir de uma relação transferencial entre analisando e analista, a investigação do inconsciente. Entretanto, nessa mesma época, assistimos à psicanálise se fundar, não só como um novo método de tratamento mas, também, como uma nova escola do pensamento, que surgiu da cultura e que iria, a partir daquele momento, passar a influenciar essa mesma cultura. E hoje, no século XXI, cerca de 120 anos após a invenção da psicanálise? Quais os efeitos dos impasses da cultura sobre o sujeito contemporâneo?
Podemos perceber que o sujeito dos tempos de Freud e o sujeito da contemporaneidade possuem semelhanças e diferenças. Sem dúvida o fenômeno da agressividade descrito por Freud em 1930 se mantém, entretanto, considerando que as mudanças na cultura têm impacto sobre o sujeito, é inquestionável que algo se modificou. Diante do declínio do patriarcado e da queda das tradições não temos mais um ideal de Pai que regule o gozo e pré-estabeleça nossas escolhas. Se por um lado a consequência dessa mudança é o surgimento de novas formas de construir uma vida (identidade, trabalho, relações amorosas etc), por outro lado a falta de um referencial também tem, como consequência, um sentimento de desorientação, podemos dizer, a partir de Jacques Alain Miller, que a contemporaneidade é marcada por um sujeito desbussolado, um sujeito sem um universal que regule seu gozo.
O que temos colocado no lugar desse ideal ou referência que decaiu? Considerando que esse ideal era, sobretudo, um discurso, a queda deste nos faz apontar não mais para um discurso, mas para os objetos. Qual o resultado disso? que na busca por esse objeto o sujeito ultrapassa inibições e faz dessa busca pelo gozo a causa da sua vida, através da relação com os objetos. Qual, então, a diferença entre sujeito neurótico freudiano e o sujeito neurótico contemporâneo? A diferença está no fato de que os sujeitos de hoje se sentem no direito de gozar de todos os objetos, enquanto o neurótico freudiano se sentia culpado em querer tudo. O sujeito contemporâneo funciona submetido ao imperativo categórico: goza! O direito de gozar se tornou equivalente ao direito de consumo e acabou por se transformar em uma obrigação de gozar. Nos explica a psicanalista Ondina Maria Rodrigues Machado em sua tese de doutorado A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo.
Paradoxalmente, a clínica psicanalítica nos revela que, hoje em dia, ninguém goza mais que antes, a diferença é que no lugar de um desejo sempre inalcançável e, portanto, insatisfeito, a contemporaneidade está marcada pela obrigatoriedade de gozar, efeito do capitalismo que fabricou um Outro gerador de consumo. Diante de tal imperativo, o recurso do sujeito contemporâneo é elevar o mais-de-gozar ao ápice de suas relações sociais, ou seja, fazer do objeto o agente do seu discurso no mundo.
O impacto desse gozo, ao mesmo tempo, desregulado e imperativo tem como consequência os sintomas mudos, marcados pelo exigência da satisfação imediata, que levam ao “esfacelamento dos laços sociais e o surgimento de novos sintomas, que provocam novas formas de mal-estar expressos na segregação, exclusão, racismo, fracasso escolar, acidentes de trabalho, desemprego, consumo desenfreado de drogas, de gadgets, levando a um excesso de gozo que determina as bases de um novo laço social.” Nos expõe de modo muito claro a psicanalista Vera Lúcia Veiga Santana em seu artigo Por que a psicanálise, hoje?.
De todos os esfacelamentos dos laços sociais citados, de todas as violências, gostaria de recortar o racismo. Faço isso pois me senti comovida pela reação da jornalista Flávia Oliveira diante da manifestação de racismo contra o jogador Vinicius Júnior na Espanha, em que torcedores do Atlético de Madri penduraram, em janeiro de 2023, um manequim em uma ponte com a camisa do jogador Vini Jr, simulando um enforcamento. A jornalista Flávia Oliveira fez uma precisa leitura não qual relaciona o episódio racista contra o jogador com a poesia “Strange Fruit” de 1937, escrito por Abel Meeropol (um professor judeu de colégio do Bronx), sobre o linchamento de dois homens negros. Esse poema foi musicado e cantado pela Billie Holiday na década de 1970. O poema começa assim:
As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto,
Sangue nas folhas e sangue na raiz,
Um corpo negro balançando na brisa sulista
Um estranho fruto pendurado nos álamos.
A cena de racismo contra o jogador Vinícius Junior — Vini, do Real Madri — convoca, portanto, ao linchamento e ao homicídio, nos aponta a jornalista, de todas as pessoas negras e essa questão não pode se encerrar numa simples nota de repúdio.
Após essa forte e justificada reação, Flávia Oliveira fez a seguinte convocação em seu podcast Angu de grilo (exibido no dia 31 de janeiro de 2023): “Gostaria de convocar as pessoas brancas pra refletirem, como vocês explicam, em 2023, esse nível de violência do supremacismo branco, como isso pode acontecer? como vocês dormem?” Apontando, inclusive para a insuficiente reação do clube do jogador, Real Madri, que se limitou a escrever uma nota de repúdio.
Eu, Renata Wirthmann, me senti convocada e convido vocês, leitores, para uma posição antirracista de reflexão, a partir da psicanálise. Na obra de Freud o tema do racismo foi sempre muito presente, especialmente ligado ao antissemitismo, ou seja, ao racismo em relação aos judeus. Na obra de Lacan, o texto televisão e outros artigos escritos entre os anos de 1967 e 1970 previam o aumento do racismo no mundo.
Lacan, retomando o texto freudiano, aponta que o racismo muda algumas de suas características em cada época, mas, estruturalmente, ele se mantém. O racismo muda, portanto, os seus objetivos a medida em que as formas sociais se modificam, entretanto observamos que o racismo permanece se sustentando a partir da rejeição de um gozo inassimilável e do domínio de uma barbárie.
De modo semelhante, o historiador português Francisco Bethencourt escreveu uma importante obra intitulada Racismos: das cruzadas ao século XX. Francisco define que “o racismo é relacional e sofre alterações com o tempo, não podendo ser compreendido na sua totalidade através do estudo segmentado de breves períodos temporais, de regiões específicas ou de vítimas recorrentes — negros ou judeus, por exemplo”.
Seguindo as investigações sobre racismo, Francisco se deparou com a constatação de que não é possível localizar o racismo exclusivamente na cor da pele e cita o exemplo dos judeus no holocausto como o furo dessa premissa, afinal, sabemos que a cor da pele judaica não foi a causa de suas mortes. É necessário perceber que as práticas sociais e políticas operam na definição do racismo. A hipótese que surge daí é do “racismo como uma prática de discriminação e segregação”. Voltando para Lacan temos a descrição da hipótese de um capitalismo marcado pela ampliação, cada vez mais dura, da segregação. O racismo é, portanto, a vontade de matar aquele que encarna o gozo que o racista rejeita. O que é necessário para que existam racistas? “Basta o mais-de-gozar que se reconheça como tal” nos diz Lacan no seminário 18.
Num livro da década de 1980, escrito por Nogueira, e intitulado “tanto preto quanto branco” podemos encontrar uma boa elaboração sobre o racismo no nosso país. O autor nos explica que, no Brasil “os brasileiros não se consideram racistas”. Isso pôde ser constatado numa pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, encomendada pelo Carrefour em 2021, que constatou, ao perguntar para comuns se o Brasil era racista, registrou que 84% das pessoas percebem o racismo mas, ao questionar se o entrevistado se considerava racista, apenas 4% se considera racista. Em resumo: Segundo a própria população brasileira, o Brasil é uma pais racista porém sem pessoas racistas. Como isso seria possível?
Para concluir, eu gostaria de lançar a seguinte constatação: se o racismo é um acontecimento social e estrutural, não se trata mais de questionar se somos ou não racistas — Somos! O Brasil é! as instituições são! Os times de futebol são! As torcidas São! Ao racismo nos resta, portanto, uma vez que ele é incontestável, se opor, detê-lo. Detê-lo sempre e de forma explícita e clara. Penso que a psicanálise é uma importante ferramenta nesse percurso. Num percurso antirracista.
O que está em jogo no nosso tempo, na contemporaneidade, como apontei acima, não é mais a castração (limite), mas a relação de cada um com esse Outro gozo (desregulado). A psicanálise se torna um lugar imprescindível para que o ódio, a violência, a segregação, o racismo, encontrem uma outra saída que não o ato violento. A psicanálise oferece, a partir da regra fundamental da associação livre e dos tempos lógicos — tempo de ver, de elaborar e de concluir — um terreno para recuar do ato. A psicanálise propõe, a partir da escuta clínica, uma oportunidade para que o sujeito possa civilizar o gozo ilimitado da contemporaneidade para levar uma subversão da barbárie em solução sinthomática, como nos propõe a psicanalista Fernanda Otoni Brisset em seu artigo “A subversão da barbárie possível”.
Renata Wirthmann é psicanalista e professora associada do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCat). Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília e mestrado em Psicologia pela UnB. É colaboradora do Jornal Opção.