Terra arrasada pelo “besouro” Bolsonaro, Brasil tem urgência de se reerguer
Lidando com o tédio dos dias de atestado por conta de um pequeno acidente de trabalho, aquele homem passou todo um dia levantando um castelo com cartas de baralho na mesa de centro da sala da casa. Queria apresentá-lo ao filho quando ele chegasse da escola, fazê-lo se admirar de seus dons. Para tanto, além de suas habilidades manuais, fechou todas as correntes de ar possíveis de levar abaixo, por uma lufada, todo o seu projeto arquitetônico de papel.
Faltavam dez minutos para a chegada do garoto quando terminou a empreitada. Não era muito de fazer grandes surpresas, precisava apenas lhe mostrar o que havia erguido, já tinha até planejado contar os detalhes ao filho sobre como fizera sua desafiadora, embora provisória e efêmera, obra de arte.
Em dois minutos o menino entraria em casa. Foi quando um besouro se desprendeu da cortina em que ficara o dia inteiro e, em movimentos irregulares, com apenas um leve toque em seu voo caótico, desfez o castelo que custara ao homem horas e horas de dedicação. O pai suspirou profundamente e, num ato estoico, recolheu a suas caixas aqueles inúmeros ases, reis, valetes e sete-copas. Depois, abriu a porta: “E então, filho, foi tudo bem no colégio?”, sorriu, beijando-o na testa para recebê-lo.
Falar que “as coisas não acontecem por acaso” sempre vai parecer algum ensinamento de livro de autoajuda, mas, de fato, talvez só mesmo alguém com a experiência e a voluntariedade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) poderia ter conduzido de maneira serena e segura estas semanas de tribulações por que o País passou e, de certa forma, continua passando. Mas a destruição infligida ao País e suas instituições recentemente é consequência de um projeto maquinado há anos.
Quando o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em viagem aos Estados Unidos, declarou que, antes de promover alguma coisa à frente do governo, teria primeiramente de “desconstruir” e de “desfazer” outras muitas coisas, não estava dizendo nada da boca para fora. A fala, dirigida a seu guru, morto em janeiro de 2022, literalmente foi esta: “Prezado Olavo de Carvalho, o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa, para depois começar a fazer.” Eram março de 2020, e o evento era um jantar em Miami.
Naquele dia, o Brasil tinha uma morte por Covid-19 em seus registros. Em dois meses, enquanto a pandemia era vista como uma “gripezinha” por Bolsonaro, começaria a “desconstrução” ou “desfazimento” do Ministério da Saúde, que foi entregue a um general subserviente depois de dois médicos, em sequência – Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich –, deixarem a chefia da pasta por não compactuarem com a adoção da agenda negacionista regada a cloroquina, ivermectina e muita aglomeração.
O resultado foram quase 700 mil mortos pelo coronavírus somente por números oficiais, com picos de mais de 4 mil óbitos nos piores dias e multidões agonizando por falta de oxigênio em Manaus, cidade natal do ministro-general Eduardo Pazuello, premiado no ano passado pelo eleitorado fluminense com uma cadeira na Câmara dos Deputados, no PL de Bolsonaro.
Depois da derrota nas urnas, ocorrida a duras penas e com extremo uso da máquina de governo, os “patriotas” levaram ao limite literal a “desconstrução” pregada por seu líder, invadindo e depredando os três principais prédios dos Poderes Legislativo (Congresso Nacional), Executivo (Palácio do Planalto) e Judiciário (Supremo Tribunal Federal). O mais de milhar de prisões decorrentes não remenda o estrago da imagem do País pelo mundo nem das peças de altíssimo valor histórico e artístico (em tempo: a extrema direita não perdoa a cultura).
Mas a cereja desse venenoso bolo bolsonarista foi descoberta depois de encerrados os longuíssimos 1.461 dias de governo. A crise humanitária que se abateu sobre o povo Yanomami é só o exemplo mais explícito de políticas públicas voltadas para a destruição das estruturas das instituições, no intuito de entregar o País a uma casta de gente que se autointitulava – e ainda se autointitula – como “escolhida”, como “missionária”, como os verdadeiros “patriotas”.
O que consola a metade da população que votou, senão pela democracia, pelo menos pelo bom senso, é que paira no ar, em meio às sombras extremistas, a sensação de que o País voltou a ser governado
Em condições normais, o conceito de “patriota” já teria lá seus problemas, como, por exemplo, ligar diretamente certo virtuosismo ao fato de alguém ou algum grupo adotar ou defender as cores nacionais. Ora, ser “brasileiro com muito orgulho e com muito amor” não torna ninguém imune às leis do trânsito ou à Constituição, por exemplo.
Essa é a herança institucional que Jair Bolsonaro e seu bando deixaram para a Nação, sem entrar na complicada questão econômica. Ainda na semana passada, um grupo de “patriotas” fazia perto de Jundiaí (SP), a 50 quilômetros de São Paulo, uma peregrinação ao longo de uma rodovia com mesmos os dizeres golpistas que levaram tantos à cadeia por conta dos atos em Brasília, logo depois e também na Operação Lesa Pátria.
Por outro lado, o que consola a metade da população que votou, senão pela democracia, pelo menos pelo bom senso, é que paira no ar, em meio às sombras extremistas, também a sensação de que o País voltou a ser governado. O encontro entre os presidentes Lula e Joe Biden, dos Estados Unidos, foi fincado em metas de construção, de erguimento de pontes em, vez de muros, entre os dois países e desses países com o restante do mundo. Lula levou para Washington não um séquito vestido de verde e amarelo – esse, quando apareceu, foi para apupá-lo –, mas ideias para combater a fome, a guerra, a urgência climática. Não é por ser Lula: qualquer outro presidente, vivendo e vivenciando as crises local e mundial que afetam sua nação, faria o mesmo. Exceções que comprovam a regra? Bolsonaro ou outro extremista à la Trump, especialistas que são em desagregar para se impor.
Ter líderes com experiência em união e construção é fundamental no grave cenário atual do globo. Localmente, Lula é a “bola segura” para o momento, a despeito de seus excessos em declarações recentes, até com uma desnecessária ponta de vaidade. Coisas da política, mas quem entende a conjuntura sabe a necessidade de juntar forças para alavancar o País.
Talvez a declaração mais sincera de Bolsonaro sobre seu legado foi dada ao Irmãos Dias Podcast – o primeiro canal do tipo a entrevistá-lo como presidente da República – em 11 de abril de 2022. O entrevistador, André Dias, perguntou: “Presidente Bolsonaro, qual o principal feito de seu governo, aquilo que o sr. considera marcante?”. A resposta: “Há pouco tempo, você não via as cores verde e amarelo por aí. Hoje você vê em qualquer lugar, uma bandeira na janeira, numa fazenda, uma vara de bambu, um pano verde, amarelo, azul e branco lá em cima, tá?”.
Besouro até voa, mas não foi feito para isso. Só que, ao contrário de Bolsonaro, em sua rota de colisão, o de nossa história do texto acertou um alvo sem qualquer dolo. Já o ex-presidente passou quatro anos usando verde e amarelo para chutar o castelo de cartas. É preciso que alguém estoico tenha paciência para refazê-lo e apresentá-lo com orgulho aos filhos da Nação.