Estudantes da USP perseguem professora que rejeita rédeas
Demóstenes Torres
Quando chegou a minha época de entrar no curso superior, havia em Goiás duas universidades, ambas na mesma praça de Goiânia, a Universitária, um lindo e revolucionário projeto realizado pelo prefeito Iris Rezende nos anos 1960. Chegar ali, mesmo que no 5º ônibus lotado do dia, era um sonho. E chegávamos berrando as canções de protesto contra o inimigo da vez.
Vivíamos os anos de chumbo, durante a ditadura que cassou o próprio Iris, com vias públicas e corredores sediando todo tipo de manifestação. Mas nunca houve algo sequer parecido com o que vitima a advogada Janaína Paschoal.
Janaína é professora na principal universidade da América Latina, a USP. Licenciou-se para ocupar cargos, o mais recente de deputada estadual por São Paulo, a mais votada da história do país: 2.060.786 votos em 2018. Em 2022, tentou ser senadora, ficou fora da polarização Bolsonaro X Lula e perdeu. Em vez de se orgulhar de sua professora, uma fatia do alunato a recepciona berrando jingle de protesto a fazer da sobriedade o inimigo da vez.
O Centro Acadêmico 11 de Agosto, que reúne militantes de esquerda matriculados no curso de direito da USP, lançou nota considerando “indecente para o país” a contribuição de Janaína. O que a professora fez de indecente? Roubo? Corrupção? “As suas [de Janaína] supostas divergências com os movimentos de extrema-direita são mínimas e consideramos haver, em suas mãos, tanto sangue quanto nas mãos deles.” Quem ela matou? Qual seu crime? Nenhum. Pelo contrário. Teve atuação irrepreensível na Assembleia Legislativa Paulista.
Essa gente sabe que sua professora é correta. A birra dos vermelhinhos, sobretudo do PT, vem da cassação da ex-presidente Dilma Rousseff. Janaína e outro advogado renomado, Miguel Reale Júnior, acharam pêlo em ovo de serpente e construíram o ninho num parecer pelo qual ela recebeu do PSDB R$ 45 mil. Detalhe: o partido e Reale não acreditaram no texto. Eu também não. Desconheço as razões deles, a minha é uma só: assim como Janaína, Dilma é honesta. Política inábil, sem traquejo para lidar com congressistas, governou sem apoio popular, pessoalmente de difícil convivência, linguajar complicado, mas cometeu exatamente nenhum crime, muito menos de responsabilidade.
O Brasil ostentaria halls de prêmios Nobel, medalhas Fields, Oscars, patentes importantes vindas do interior se universidades públicas tivessem menos militantes partidários e mais trabalhadores, empreendedores, profissionais liberais, enfim, “alegria e muito sonho espalhados no caminho”, como Milton Nascimento e Wagner Tiso encantam no poema “Coração de estudante”.
Pensa-se que seja questão de gênero. Dilma caiu por ser mulher? Não, por evitar articulação com o Congresso Nacional. Janaína está sendo fustigada por ser mulher? Também, mas o machismo é apenas uma das preocupações. O problema maior são os projetos de Hitler, Stálin, Mao, Pol Pot e Fidel embutidos em quem literalmente vira as costas para a professora que recusa rédea ideológica. Evidentemente, não há entre eles monstros como os citados, mas vítima de monstruosidade já existe pelo menos uma.
O aluno de instituição pública é privilegiado. A USP, que custa R$ 8,4 bilhões/ano (Orçamento 2023) ou 5,2% do ICMS do Estado mais rico do país, investe em cada estudante ½ salário mínimo por dia de aulas –as disponíveis, não as que ele frequenta, pois são contas diferentes. Na faculdade de direito, o enfoque é até outro, porque se a pluralidade for a exceção, o regime a seguir será de exceção.
Daqui a pouco, essas encarnações do fascismo de esquerda e de direita, que agridem alguém cujo interesse é executar a sua tarefa, serão advogados, professores universitários, defensores públicos, procuradores, fiscais, delegados, integrantes do Ministério Público e da Magistratura, Guardas Civis, integrantes das Forças Armadas, policiais estaduais e federais e bombeiros militares. Hoje, a autoridade é a professora e eles a atacam. E quando forem eles as autoridades? O que farão com a estabilidade garantida, a conta cheia de salário, a arma cheia de balas, o teclado cheio de ctrl+c, ctrl+v e a cabeça cheia de vento podre?
Falta a essa juventude específica o coração de estudante cantado por Milton e Tiso:
“Há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê flor e fruto”.
Se for o broto lembrado pelo rei Roberto Carlos em “Na lua não há”, pode soar óbvio e repetitivo, mas nem na Lua há vida dando flor e fruto de quem castiga a professora apenas porque ela pensa diferente –aliás, porque ela pensa. Não havendo broto, não haverá vida.
O que estão a aprontar com Janaína é, ainda, injusto. A informação é que sequer tocava em política durante suas aulas, nem a favor nem contra pessoas ou correntes. Pessoas e correntes surgiram em sua volta, à sua volta, de onde menos se esperaria: da esperança renovada de nova aurora a cada manhã, conforme a canção. Ou seja, do coração dos estudantes, da coação de estudantes.
A perseguição a Janaína está em curso. Ela, guerreira, resiste. Torce-se para que escape do final escrito com as mesmas tintas para Ibsen Noronha, outro luminar do direito que era professor de universidade pública, a UnB, que simplesmente acabou com a cátedra para implodir o inimigo da vez. Tchau, Noronha, vá para Portugal, atravesse o oceano de ódio dos avessos à democracia. Resta esperar pela reação da USP ante a insistência de Janaína em exercer o ofício de transmitir conhecimento. Ou, como no case Noronha, a universidade prefere acabar com a cadeira ou com o próprio curso, a 4 anos de ele completar 2 séculos, a dar voz a uma professora diante de turmas às quais tem muito a ensinar?
Em seu período na política, Janaína batizou o PT de República da Cobra. Estava errada. O animal peçonhento usa o veneno só quando se sente atacado. O ser rastejante que faz definhar quem o abriga não é vermelho. É só verme.
Esse texto foi publicado originalmente no site Poder360.