Por que choramos por Dumba, a menina atropelada, e não choramos por Dumba, a gata atropelada e morta?

Para Candice, Juliana, Diana, Michelle, Henrique, Emanuel, Carol, Marcos, Ricardo, Antônio, Paulo, Alexandre, Fernanda, Ailton, Alessandra, Luana, Josi, Danilo, Edivaldo, Silvana, Mário, João Cláudio, Luziano, Lucíula, Ivair, Ilca, João Paulo, André, Ana Paula, Vinicius, Mayler, Daniel, Roberta

Dumba é uma menina de 2 anos. Inteligente, esperta, ativa. É o centro da vida dos pais, Maura e Danillo Alvim, que se alegram e se orgulham ao ouvi-la dizer: “mamãe” e “papai”. Risonha, cativa a todos, parentes, amigos do casal e vizinhos. É a estrela do Condomínio Housing Flamboyant, nas proximidades do Autódromo de Goiânia e ao lado do Empório Prime. Aprendeu a dar tchau e a jogar beijos.

Dumba é a felicidade dos pais, que, aparentemente, rejuvesceneram após seu nascimento em janeiro de 2021. Quando podem, os dois voltam mais cedo do trabalho com o único objetivo de revê-la, pois seu sorriso é como se fosse um elixir que refaz o espírito e o ânimo de Maura e Danillo e reduzem o impacto das atribulações do dia a dia.

Dumba ainda não vai à escola, embora os pais, com o apoio de uma babá eficiente e amorosa, já a ensinam muitas coisas. E ela aprende tudo rapidamente, sorvendo o conhecimento dos entes queridos, transformando-os em seus.

Dumba, quando vê um cachorro, sorri e diz “au, au, au”, chamando-o. Não os teme. A babá Maria do Socorro e os pais alertam que nem todos os cachorros são mansos, mas ela parece não se importar, convidando-os a se aproximarem. Quando algum mais manso chega perto, ela abre um sorrisão e repete “au, au, au”. O cachorro parece perceber sua tranquilidade e empatia, às vezes lambendo suas mãozinhas.

Dumba já está andando, às vezes com alguma firmeza, e, aqui e acolá, meio trôpega. Cai, levanta-se, sempre sorrindo. Uma alegria só.

Dumba é o signo da felicidade, sua representação perfeita. É uma criança bonita, mas o que impressiona mesmo é o seu carisma. Sim, crianças, desde muito pequenas, podem ter carisma. É o caso de Dumba.

Dumba, acompanhada de Maria do Socorro, que cuida à perfeição da criancinha, desgarra-se, certo dia, e corre para a rua. Apressada, pois está atrasada para o trabalho, Sandra-Mara atropela a menina. Ao perceber que a garotinha está desmaiada, a motorista hesita em prestar socorro e foge. Dali a cinco minutos, volta ao local do acidente, desce do automóvel e corre até Dumba, que está no colo da babá.

Dumba está viva, mas com a perna direita fraturada. Sandra-Mara se oferece para levá-la ao hospital. Porém, um médico que mora no condomínio já havia prestado os primeiros-socorros e uma ambulância, em seguida, a levou para um hospital ortopédico, na Avenida Paranaíba.

Dumba, que ficou internada três dias, sobreviveu. A perna se recuperou bem e a menina voltou a sorrir. O carisma e a empatia não haviam desaparecido. Os pais redobraram os cuidados e o condomínio sugeriu que, no lugar de 20 km por hora, os motoristas reduzissem a velocidade, principalmente em determinadas curvas, para 10 km. Os moradores concordaram que os cavaletes, que são redutores de velocidade, seriam mantidos nos locais adequados. Nunca mais houve outro acidente.

Dumba provavelmente nem se lembra do que aconteceu. Porém, altamente preocupados e talvez com uma intenção educativa, os pais processaram Sandra-Mara. A Justiça determinou que a motorista pagasse 5 mil reais em cestas básicas para uma entidade que atende idosos e determinou que prestasse serviços comunitários durante seis meses. Sandra-Mara, que é uma pessoa de bem e íntegra, nem sequer recorreu. Pagou e cumpriu sua pena.

A Verdade há deslumbrar os poucos/os homens — p’ra não cegá-los. — Emily Dickinson

Outra história, a de Dumba, a gatinha

Agora, é hora de uma reviravolta, pois Dumba, os pais, babá e Sandra-Mara não existem — são personagens ficcionais.

O que se conta, a partir de agora, é a história de Dumba, uma gatinha escaminha (confira as fotografias), ainda filhote ou, por assim dizer, adolescente. Agora, sim, trata-se de uma história real.

A dona de Dumba contou a vizinhos que a trouxe da fazenda. Castrou-a e, em seguida, ela escapou para o condomínio, o que deve ser procedente, pois felinos, muito mais do que cachorros, não são facilmente controláveis, e adoram longos passeios. Eles são independentes e cada vez mais são objeto de estudos da ciência e da filosofia (o filósofo britânico John Gray escreveu um livro fascinante: “Filosofia Felina — Os Gatos e Sentido da Vida”).

Dumba, de acordo com a proprietária, era arredia. Eventualmente, alguns moradores, afeitos a gatos, conseguiam tocá-la. Recentemente, ao me ver com o labrador João Fidelis, um “gigante”, desceu do muro de uma casa e veio para o meu lado. Retirei o celular e a fotografei. Pareceu perceber que João, apesar do tamanho e de ser um cachorro, era inofensivo, por isso chegou bem perto, e então pude passar a mão direita na sua bela pelagem. Ela ficou quieta, observando e, de repente, miou.

João me puxou, pois queria continuar a caminhada. Seguimos em frente. Adiante, João parou, para cheirar as possíveis marcas deixadas por outros cachorros, e então olhei para trás. Dumba — que alguns (como Alexandra e Diana, moradoras exemplarmente dedicadas aos animais, e eu) chamavam de Mingau (tínhamos a impressão de que fosse um macho) — estava me acompanhando. Porém, quando me voltei, a gatinha recuou e mudou sua direção, seguindo, tão lépida quanto independente.

Um dia depois que a fotografei, ao lado da quadra de tênis, Dumba estava morta. Fora atropelada por uma sra. que mora no condomínio. Tudo indica que ela não viu a gatinha, portanto não houve nenhuma intenção de atropelá-la (não há nenhum dolo). Parece que a sra. sequer viu a filhote. A sra. cria cachorro e, sempre notei, é cuidadosa com ele (o primeiro morreu, e ela adotou outro).

John Gray relata que o homem se tornou o centro do universo, uma espécie de deus pagão, mesmo quando se é religioso fervoroso, e por isso sacrifica tudo (as matas, por exemplo. Alguém acredita que, com a demanda crescente por alimentos, o desmatamento em países produtores de commodities vai realmente ceder?) e todos os animais para garantir sua sobrevivência. A cada dia que um bairro surge, mais bichos são empurrados para outros lugares, que são cada vez menores e sem alimentos (como não há mais “cadeia alimentar”, até onças estão frequentando bairros das cidades).

Quando nos mudamos para o Housing, em fevereiro de 2003, à noite entravam no condomínio raposas, ouriços, tamanduás, mucuras, pequenos macacos (menos noturnos) e, até, cobras (jararaca, cipó e, uma única vez, jiboia). O espaço agora é nosso, daí os muros e os dois guardas armados na portaria para nos proteger contra a criminalidade e nossos medos cotidianos (parece que temos medo de quase tudo, até de viver).

Se o espaço é nosso, de mulheres e homens, não há lugar para os supostos indesejáveis, como gatos de rua — que existem em praticamente todos os bairros de Goiânia, e até nos mais higienistas (me parece que o Aldeia do Vale e o Alphaville convivem bem com os animais). Fica-se com a impressão de que, ao entramos para o Housing, a gente (sim, todos nós, uns mais, outros menos) deixa os problemas do lado de fora. Daí a exigência de “limpeza”, às vezes excessiva (há quem reclame até das folhas e dos coquinhos, esquecendo-se de que não moram em apartamento), e as críticas, por vezes radicais, aos animais tidos como “ofensivos” e até “perigosos”, como gatos (talvez visto como micro-leões), quem sabem portadores de doenças (as nossas parecem piores, não raro).

Problemas existem em todos os lugares, porque o mundo, feito por nós e não por “terceiros” — ou seja, outros animais (implica-se até com abelhas, seres tão cruciais para a agricultura; há uma excelente reportagem sobre elas na revista “Piauí”) —, não é e jamais será perfeito (um dos grandes equívocos dos comunistas talvez seja a ideia de que seria possível criar o paraíso na Terra; não é). Há alguns anos, duas casas do Housing, da chamada terceira etapa (e é preciso acabar essa guetização, pois todos nós somos moradores de um único bairro), foram roubadas. Os larápios levaram dólares, euros, reais e joias. Abriram até um cofre. Até hoje, não se sabe quem cometeu o crime; ou pelo menos os criminosos não foram penalizados pela Justiça. Certa feita, a televisão da casa-mostruário da terceira etapa foi roubada e, também, não se descobriu os autores do crime.

Tempos depois, um jovem começou a usar drogas (maconha) no condomínio. Um morador, que era amigo de alguns delegados, pediu uma investigação. Descobriu-se que não havia tráfico. Tratava-se de um usuário que não estava tentando convencer ninguém a imitá-lo. Estava sozinho. Deixado de lado, ele morava com uma irmã, acabou se mudando. (Noutro condomínio, um dos mais conhecidos de Goiânia, uma criança de 12 anos foi estuprada. O máximo que se conseguiu fazer foi pressionar o homem, que era rico, a se mudar. A família da jovem também se mudou.)

O nosso condomínio tem uma longa história, já com 20 anos, e que merece ser contada (e não apenas pelo ângulo dos conflitos). Pouca gente, dos atuais moradores, sabe que as grades das piscinas foram colocadas a pedido — um verdadeiro clamor — de Serginho, um advogado. Numa reunião de condomínio (feita no espaço para as crianças brincarem), com a presença do pessoal da Fal — a mesma empresa do Alphaville (que trouxe paisagistas de São Paulo, que contaram com o apoio da floricultura goiana Cantinho do Professor 3), Serginho fez um apelo dramático (já havia perdido um filho, afogado, mas não no Housing), que comoveu a todos, inclusive aos responsáveis pela obra. Excelente advogado, Serginho ainda mora no condomínio, na rua em que Dumba foi atropelada e morta.

Alguns de seus primeiros moradores morreram. O médico-ortopedista (um dos mais qualificados de Goiás) Marcelo Pacheco foi assassinado por um oficial da Polícia Militar, que, quase duas décadas depois, não foi preso. Pelo contrário, foi promovido de major a coronel. O promotor de justiça Divino Nunes foi morto por um assaltante, que acabou preso. Dimas Aidar, um arquiteto que contribuiu muito para melhorar o condomínio, por ter conhecimento de obras, morreu, em 2004, de meningite. Temos uma bela pracinha em sua homenagem e todas as vezes que passo por lá lembro-me de como era gentil e gostava de ajudar as pessoas. Ele tinha o dom de explicar bem e detalhadamente as coisas.

Nos primeiros tempos, a maioria dos moradores — e talvez continue assim — não se preocupava tanto em “criticar” animais. Hoje, há pessoas abnegadas, como Juliana, Alessandra e Diana, que cuidam dos gatos, os chamados “de rua” (e chegam a adotar alguns; nós também adotamos uma filhote, a Filomena, há dois anos).

Mas há também indivíduos, que também têm seus direitos, que devem ser observados, que não apreciam felinos, sobretudo os “de rua”, e parecem acreditar que é possível mantê-los aprisionados em quintais-jaulas. Talvez seja vital que a gente aprenda ou reaprenda a conviver com os bichos — e, a rigor, também somos bichos (é provável que, consciente ou inconscientemente, as pessoas acreditem que a Terra, planeta que estamos destruindo, é só delas).

Precisamos ter uma convivência mais harmoniosa com os “diferentes”, e diferentes, no caso, devem ser incluídos indivíduos, os seres humanos, e os demais animais, como os gatos. A rigor, ao contrário de vários bairros, nem há tantos gatos “de rua” no Housing — talvez quatro ou cinco. Talvez seja crucial fundar uma associação de proteção aos animais e às árvores. Há uma tendência, entre determinados síndicos, a tratar a natureza como uma coisa decorativa. Se a planta tem 20 anos, então vamos arrancá-la para plantar azaleias, diz-se. Argumenta-se, com frequência, que as árvores mais velhas estão podres, o que, no geral, não é visível. Se estão (e pode ser que algumas estejam, colocando em risco casas e pessoas), os laudos não são apresentados aos moradores. De que adianta defender a Amazônia se destruímos as pequenas “Amazônias” que existem perto de nós, em razão de uma visão decorativa da natureza? As acácias do condomínio têm sofrido, assim como, em breve, certamente vão sofrer os jacarandás (em Buenos Aires, na Recoleta, é possível ver o cuidado do poder público com as árvores. Estacas de aço são colocadas para amparar galhos de gameleiras).

Ouvi, de uma pessoa esclarecida e bem-intencionada: “Se a árvore for arrancada, a gente planta outra”. Não importa, pelo visto, se a árvore embeleza e colabora para o condomínio ser menos “quente”… e por tantos anos. Por sinal, vale elogiar o trabalho que a zeladora Josi e os jardineiros Danilo e Edivaldo fazem no condomínio. Muito do que temos de belo é de responsabilidade dos três, que são pessoas simples e dedicadas, às vezes precisando tão-somente de orientação mais ambientalista. E os pais deveriam se preocupar com a quantidade de veneno que se bate nas áreas verdes do condomínio. Como se sabe, crianças andam descalças e põem as mãos em vários lugares.

Mas voltemos à morte de Dumba e ao debate que gerou. No WhatsApp do condomínio, houve uma discussão acerba, que vejo como positiva. Antes debater uma questão do que escondê-la. Cada um expôs livremente seu pensamento, mas a tendência de “cantar” vitória, a partir de um texto da síndica Luana Alkmin — que pelo menos se interessou pela questão, o que é um avanço (frise-se que quase todos os síndicos que residiam no condomínio se mudaram, desgastados, cansados. Restou Paulo Rezende, que, por sinal, foi um excelente síndico e até hoje zela, direta ou indiretamente, do condomínio) —, me pareceu falta de humanismo. E, no caso, incluo em humanismo a questão dos outros animais, como gatos e cachorros (já sumiram cachorros de duas casas no Housing).

Um comentário do advogado Antônio Sérgio me chamou a atenção, por sua pertinência. Ele sugeriu que as pessoas não devem pegar gatos e, talvez por alguma insatisfação, como um sofá arranhado, soltá-los no condomínio para que bons samaritanos os adotem. Adotamos a Filomena quando era um bebê, digamos assim. Portanto, não deve chegado sozinha ao condomínio.

Se os gatos vão continuar aparecendo, porque nosso bairro não é diferente de outros só por causa dos muros, das cercas elétrica e da vigilância privada, o que devemos fazer? Matá-los? O gato Alfredo, felino branco e cinza (tigrado) de cara inchada e arisco, desapareceu de repente. O Zé (é “de rua”, mas uma pessoa cuida dele) e Branquinha andam pelo condomínio, faceiros, como se também fossem donos do espaço, o que, de alguma maneira, são. Me disseram: “Zé vai ser o próximo a sumir”. Não dá para acreditar. Zé, gato cinza e branco, é mansinho de se pegar no colo. Mas, claro, arisco com outros gatos, como é normal entre felinos.

O que se deve fazer é constituir uma Comissão de Proteção aos Animais e ao Meio Ambiente, que não precisa ter recursos do condomínio, com o objetivo de cuidar dos gatos de rua que já são “moradores” — sim, apesar das aspas, são tão moradores quanto nós — e dos chegantes. Vaciná-los, castrá-los e alimentá-los: eis o que se deve fazer. Precisamos conviver com os animais, aceitando que eles têm um lugar no mundo, e ao nosso lado, queríamos ou não.

Eu havia encomendado à redação do Jornal Opção uma reportagem sobre o atropelamento de Dumba, a gatinha de apenas alguns meses. Ao recebê-la, para fazer a edição, percebi que se tratava de uma matéria policial. E o caso vai além disso: trata-se de discutir o mundo em que vivemos e o que virá adiante (uma tragédia, por certo). O mundo vai ser só nosso — mulheres e homens — ou vamos incluir as demais espécies, como gatos e cachorros? No caso de Dumba, ao menos uma pessoa disse: “Ah, mas é só uma gata!” Mas a questão é muito mais ampla. É sobre o que estamos fazendo com o mundo, que não é apenas nosso — é dos leões, das onças, dos tamanduás, das abelhas etc.

Numa história de Franz Kafka, o grande escritor tcheco (que escrevia em alemão), o que Dumba, a gatinha, diria a Dumba, a menininha? Talvez o que a maior poeta americana, Emily Dickinson escreveu: “Eu sou Ninguém. E você?/ É Ninguém também?/ Formamos par, hein? Segredo — / Ou mandam-nos p’ro degredo.// Que enfadonho ser alguém!/Tão público — como o sapo/ Coaxando seu nome, dia vai, dia vem/Para um boquiaberto charco.”

Não sou perfeito, como ninguém é. Mas faço minha pequena parte no mundo: planto árvores (procuro não derrubá-las), cuido de animais, alimento 22 espécies de pássaros (inclusive os belos udu coroado, choquinha lisa e saíra amarela) todos os dias, assim como seu Paulo, o nosso vizinho simpático e gentil. E acredito que a paz é melhor do que a guerra. Por isso, avalio que a união das mãos, de todas, mesmo de rivais renhidos, talvez seja o melhor para lidar com problemas reais e que não serão resolvidos com violência, preconceitos e higienismos.



Jornal Opção