Comportamento do motorista em Goiânia impacta nos altos índices de multa e violência

Nos últimos dias, a divulgação de uma pesquisa gerou polêmica nas redes sociais – e fora delas. O motivo foi a afirmação de que Goiânia seria a capital brasileira com as pessoas mais mal educadas do país. O levantamento em questão foi feito pela plataforma Preply com 1,6 mil pessoas que avaliaram comportamentos de cidadãos rudes em 15 metrópoles. Dos 11 tópicos listados, 2 estão diretamente ligados ao trânsito: não dar a vez e não reduzir a velocidade ao dirigir próximo a pedestres.

No senso comum, há indícios de que essa falácia possa ter certo fundamento. No dicionário informal do “goianês”, por exemplo, “dar uma goianada” é sinônimo de fazer algo proibido pelo código de trânsito. De fato, é amplamente difundida a ideia de que goiano não para em faixa de pedestres nem dá seta, no que seriam sinais dessa falta de educação legitimamente goiana, mas especialistas discordam dessa ideia.

“Essa história de que o goiano dirige mal é uma espécie de dogma”, declara o secretário municipal de mobilidade, Horácio Mello. “Falar que o goiano não sabe dirigir, não sabe dar seta, é folclore”, confirma o perito especialista em trânsito, Antenor Pinheiro. “Aqui pode não ser uma Suíça, mas não somos os motoristas mais rudes do Brasil, estamos na média”, compara o presidente do Departamento Estadual de Trânsito de Goiás (Detran-GO), Eduardo Machado.

De acordo com os dados divulgados no ano passado pelo Ministério da Infraestrutura/ Secretaria Nacional de Trânsito, Goiânia não seria a cidade que concentra os motoristas mais mal educados do Brasil. Nesse ranking, entre as capitais, a de Goiás é a 5ª que mais multa no Brasil, contabilizando 719.191 infrações em 2021. O topo da lista ficou com São Paulo, com 6.201.017 multas, seguido por Belo Horizonte (2.019.037), Rio de Janeiro (852.619) e Curitiba (744.191).

De acordo com dados da Secretaria Municipal de Mobilidade (SMM), no ano passado, foram aplicadas pela pasta 769.708 multas em Goiânia, 50.517 a mais que no ano anterior. No entanto, o sistema do Detran-GO mostra que esse número é bem maior: 1.418.906. Isso porque órgão reúne as infrações aplicadas não apenas pela Prefeitura de Goiânia (802.258), mas também pelo Detran-GO (272.053), pela Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (Goinfra) (260.818), pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) (53.513) e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) (30.264).

Para o gerente de Educação para o Trânsito da SMM, Horácio Ferreira, é importante pensar os critérios que serão utilizados para avaliar o “bom motorista”. “O bom condutor dentro de uma análise técnica, é aquele que respeita a legislação de trânsito, guardando sempre a segurança dele e dos outros motoristas. Não é aquele que nunca foi multado, mas que comete infrações quando ninguém está vendo”, alertou.

A psicóloga especialista em Psicologia do Trânsito, Cloe Rosa, não concorda que agressividade seja uma característica nata do motorista goianiense. “Morei em São Paulo e lá o trânsito é muito mais agressivo. O goiano é imprudente”, comparou. Para ela, em Goiânia o que se tem é uma falta de respeito às leis de trânsito, falta essa que ela atribui a um fator cultural. “Cognitivamente, o motorista sabe o que pode o que não pode fazer. Mas a cultura prevalece e ele não respeita. Se todo mundo faz, eu também vou fazer”, comentou. E o que a psicóloga diz tem a ver com a sensação de impunidade que muitos condutores têm quando cometem infrações de trânsito.

Uma pessoa morreu no trânsito a cada três dias

No ano passado, a Delegacia Especializada em Investigações de Crimes de Trânsito (Dict) registrou e analisou 5.892 ocorrências. 464 condutores foram indiciados por crimes de trânsito (38,5% a mais que em 2021) e 644 inquéritos foram remetidos ao Poder Judiciário (aumento de 45,70% comparado com o ano anterior). Só em 2022, o trânsito matou uma pessoa a cada três dias, 121 no total. E comparado com o ano anterior, o número de acidentes com vítimas em estado gravíssimo cresceu 51,85%: foram 41 vítimas ao todo.

Existe uma questão cultural e muitos motoristas agem com falta de respeito e empatia

Maira Barcelos, delegada titular da Delegacia de Trânsito de Goiânia

A delegada titular da Delegacia de Trânsito de Goiânia, Maira Barcelos, tem se mostrado preocupada com o aumento dos índices de violência no trânsito da capital. Para a delegada, a maioria dos acidentes são causados por desrespeito às normas ou falta de atenção. “Existe uma questão cultural e muitos motoristas agem com falta de respeito e empatia”, afirmou. Para ela, a falsa sensação de que nada vai acontecer leva muitos condutores a despeitarem as regras de trânsito. “Acidente não é fatalidade”, determinou.

No início de maio do ano passado, Goiânia teve um dos fins de semana mais violentos da história. Foi quando sete pessoas morreram em menos de 24 horas na capital, todas vítimas de acidentes de trânsito. Entre os mortos, uma criança, uma adolescente e um idoso de 62 anos. Outros três mortos eram motociclistas que teriam se acidentado sozinhos. Dias depois, outras vítimas que tinham ficado em estado gravíssimo naquele fatídico final de semana também vieram a óbito.

Um dos casos mais emblemáticos dessa triste data foi um racha entre uma camionete e um carro de luxo na Avenida T-9. A Polícia Civil indiciou os motoristas dos dois veículos pela morte de uma adolescente e um jovem. Eles também foram responsabilizados por tentativa de homicídio das outras três pessoas que sobreviveram ao acidente.

Outro caso que chocou a cidade foi quando um carro desgovernado entrou dentro de um restaurante no Jardim Goiás e matou uma pessoa e deixou uma dezena de feridos no dia 12 de agosto. A motorista foi condenada a pagar R$ 62.782 a vítimas e familiares depois de fazer um acordo de não persecução penal proposto pelo Ministério Público, que “substitui” o processo criminal por outra forma de reparação. Nesse caso, foi o ressarcimento aos danos causados.

Rotina apressada favorece a imprudência

A psicóloga especialista em Psicologia do Trânsito, Nadyene Borges, avalia que má fama que os goianos ganharam de serem mal educados no trânsito se deve à correria do dia a dia. “Temos uma vida muita corrida e acaba que a busca de ganho de tempo ficou associada à falta de educação dos motoristas”, disse.

O gerente de Educação para o Trânsito da SMM concorda com essa ideia. “As pessoas estão mais preocupadas em satisfazer suas necessidades pessoais. E essa falta de coletividade é retratada nas infrações”, completou. O secretário municipal de mobilidade também concorda com a ideia de que a rotina apressada favorece a imprudência. “No mundo moderno, as pessoas querem ganhar tempo no trânsito e isso incentiva muito as infrações”, refletiu.

Entre as multas mais aplicadas em Goiânia, de acordo com dados preliminares da SMM (dezembro ainda está em aberto), a imensa maioria (449.710) é por dirigir acima da velocidade permitida. Isso corresponde a 58,42% das infrações. Em segundo lugar, aparece transitar na faixa exclusiva de ônibus (87.229) e em terceiro avançar o sinal vermelho (50.022). Também constam entra as multas mais aplicadas estacionar em local proibido – nas suas mais diversas variantes – e falar ao celular enquanto dirige.

Para analisar a violência no trânsito, a psicóloga Nadyene acredita que é precisa olhar não apenas para os motoristas, mas também para as vias e os veículos. “No caso do fator humano, está relacionado à personalidade do indivíduo”, explicou. Segundo ela, traços de agressividade e egocentrismo contribuem para causar um acidente, por exemplo.

Investimento em educação
De acordo com o presidente do Detran-GO, “poucos Estados investem tanto em educação de trânsito como Goiás”. Ele citou que o Governo de Goiás promove parcerias com as escolas, faz campanhas educativas midiáticas, promove fiscalização, como a Balada Responsável, além de Blitz Educativa. Ele informou também que há um projeto em discussão entre o departamento de trânsito e a Secretaria Estadual de Educação (Seduc) para criar uma disciplina de educação de trânsito no Ensino Médio.

O gerente de Programas e Projetos Intersetoriais e Socioeducação da Seduc, Marcos Pedro da Silva, confirmou que a secretaria já iniciou a discussão da criação de uma disciplina de 40 horas para alunos no 1ª, 2º e 3º ano do Ensino Médio. “Essa é a faixa etária mais próxima de pegar a primeira habilitação”, justificou. No entanto, isso não quer dizer que os estudantes irão formar já habilitados para dirigir. De qualquer forma, para o gerente, para minimizar a violência no trânsito, é preciso investir na formação humana.

Para o gerente de Educação para o Trânsito da SMM, a criação dessa disciplina só é positiva se o objetivo foi único e exclusivo para a conscientização dos jovens da importância do comportamento cidadão no trânsito, pois, para ele, “educação é indispensável para o processo de mudança do condutor”. Horácio Ferreira enfatizou que “educação e fiscalização não podem ser desconsideradas ou minimizadas”. “Mesmo quando a via não tem nenhuma sinalização, imperam sobre ela as normas de trânsito que o condutor deve obedecer”, declarou.

Mas antes mesmo da criação dessa disciplina, a rede estadual de ensino já conta hoje com 100 professores habilitados para desenvolver projetos de educação de trânsito nas unidades de ensino. “Isso já faz parte do currículo e da orientação pedagógica que é repassada para as escolas”, pontuou o professor Marcos Pedro.

Novo concurso e novos equipamentos
Quando o assunto é trânsito, o professor especialista em trânsito do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), Marcos Rothen, acredita que “o grande problema é a falta de fiscalização”, porque quando alguém comete uma infração e não é punido, incentiva outras pessoas a fazerem igual.

Para o professor, a punição também educa ao reprimir a desobediência às leis de trânsito. Além disso, ele avalia que a sinalização em Goiânia é confusa. “Nosso trânsito não é congestionado, é caótico”, declarou. E isso deixaria os motoristas estressados. “O caos irrita as pessoas e esse caos é ruim pra todo mundo”, explicou.

Com o objetivo de fortalecer o trabalho de fiscalização e educação no trânsito, a Prefeitura de Goiânia prevê a realização de concurso para agentes de trânsito ainda em 2023. A expectativa é que sejam abertas 100 vagas. Hoje a capital conta com 303 agentes de trânsito para uma frota de 1.277.755 veículos, sendo 311.352 de duas rodas e 966.433 de quatro ou mais. Ou seja, cada agente é responsável por pelo menos 4.217 automóveis. “O agente na rua diminui a percepção de impunidade e isso muda o comportamento do motorista no trânsito”, garantiu o secretário de mobilidade.

Além disso, de acordo com o secretário municipal de mobilidade, está em fase de licitação, a aquisição de novos equipamentos para a fiscalização do trânsito em Goiânia. A ideia, inclusive, não é apenas multar. “Com a nova tecnologia que vamos adquirir, será possível fazer a contagem de veículos nas vias, calcular a velocidade média em tempo real e fiscalizar carros furtados, por exemplo”, garantiu.

Os artigos 72 e 73 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), que no último domingo, 22, completou 25 anos, diz que “todo cidadão ou entidade civil tem o direito de solicitar, por escrito, aos órgãos ou entidades do Sistema Nacional de Trânsito, sinalização, fiscalização e implantação de equipamentos de segurança, bem como sugerir alterações em normas, legislação e outros assuntos pertinentes a este Código”.

E Horácio Mello acredita que as pessoas tem tido cada vez mais consciência da importância dos instrumentos de fiscalização e de seu papel enquanto cidadão. “O cidadão está nos pedindo a instalação de faixa de pedestres e redutores de velocidade”, contou. E ele acredita que esse é um indício de confiança nesses equipamentos.

Qual a saída para o trânsito de Goiânia?

Quando se trata de índices de trânsito, seja de multas ou de violência, na avaliação de Antenor Pinheiro, não só Goiânia, mas “o Brasil vai muito mal, obrigado”. Segundo ele, todo acidente decorre de uma ou mais infrações cometidas. E “quanto mais infrações são cometidas em uma cidade, mais as pessoas estão comprometendo a qualidade do trânsito”, garantiu. Só que, para o especialista, a infração seria fruto da falha do Estado.

A fiscalização, da visão de Antenor, é importante porque inibe o cidadão a cometer a infração. No entanto, para ele, “o processo de formação do condutor brasileiro é um dos mais atrasados do mundo apesar de termos um bom código de trânsito”. E a educação de trânsito, segundo o especialista, não deve ser focado nas crianças para que elas ensinem os pais. “São os pais que ensinam a criança”, lembrou.

“As palestras nas escolas não podem ser vinculadas a preparar o aluno para saber dirigir um veículo. Não podemos colocar na cabeça das crianças que o carro ou a moto são as únicas alternativas para a locomoção no trânsito”, alertou Antenor, que acredita que todos são culpados pelos problemas de mobilidade. Por isso, “É preciso incentivar o bom condutor. Andar correto é bom. Todos ganham”, finaliza Horácio Ferreira.

Mesmo assim, todos os especialistas consultados foram unânimes em citar a educação como forma de melhorar o nosso trânsito de cada dia. Conscientizar o cidadão de todas as idades é fundamental para que carros, ônibus, motos, bicicletas ou qualquer outro meio de locomoção conviva em harmonia com pedestres e com a própria cidade.



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