A verdadeira história da cachaça. Por: Sérgio Rodrigues.

A verdadeira história da cachaça.

Por: Sérgio Rodrigues

 

Pelas redes sociais circulam texto errôneo que diz o seguinte:

“Antigamente, no Brasil, para se ter melado, os escravos colocavam o caldo da cana-de-açúcar em um tacho e levavam ao fogo. Não podiam parar de mexer até que uma consistência cremosa surgisse.

Porém um dia, cansados de tanto mexer e com serviços ainda por terminar, os escravos simplesmente pararam e o melado desandou! O que fazer agora? A saída que encontraram foi guardar o melado longe das vistas do feitor.

No dia seguinte, encontraram o melado azedo (fermentado). Não pensaram duas vezes e misturaram o tal melado azedo com o novo e levaram os dois ao fogo. Resultado: o “azedo” do melado antigo era álcool, que aos poucos foi evaporando e formou no teto do engenho umas goteiras que pingavam constantemente…, era a cachaça já formada que pingava, por isso o nome (PINGA). Quando a pinga batia nas suas costas marcadas com as chibatadas dos feitores, ardia muito, por isso deram o nome de ÁGUA ARDENTE.

Caindo em seus rostos e escorrendo até a boca, os escravos perceberam que, com a tal goteira, ficavam alegres e com vontade de dançar. E sempre que queriam ficar alegres repetiam o processo. Hoje, como todos sabem, a AGUARDENTE é símbolo nacional!”

Além de ridículo, o textinho é apócrifo. A maioria das páginas em que aparece o atribui ao Museu do Homem do Nordeste, do Recife, mas isso é mais uma de suas mentiras, como já esclareceu num fórum internético, anos atrás, a coordenadora geral da instituição, Vânia Brayner: “Caros, sinto informar-lhes que esta história nunca foi contada pelo Museu do Homem do Nordeste, em nenhum de seus escritos, exposições ou qualquer documento do Museu. Nós, que fazemos o Museu do Homem do Nordeste, estamos numa verdadeira saga na internet tentando descobrir de onde saiu essa história… do Museu, tenham certeza, não foi”.

Comecemos pelas inconsistências históricas.

A aguardente (coisa e palavra) já existia quando se começou a fabricar cachaça no Brasil. A data precisa é incerta, mas, embora a destilação já fosse conhecida na antiguidade, pesquisas situam o início da destilação de álcool em torno do século XII. Se havia a aqua vitae, “água da vida”, como os alquimistas a chamavam, a palavra aguardente não ficava muito atrás: por mais que se aprecie a contribuição nacional a tal cultura, o fato é que seu surgimento deve tanto à cana-de-açúcar quanto a invenção da televisão deve a Roberto Marinho.

Os primeiros registros do vocábulo aguardente em português datam do século XV, antes de Cabral pisar no Brasil. Em espanhol, aguardiente era termo usado desde 1406. Até hoje um dicionário como o da Academia das Ciências de Lisboa informa que essa bebida é obtida pela “destilação do vinho, do bagaço de uvas, de cereais, ou de outro produto vegetal doce”. A cana de açúcar não ganha nem citação nominal, ofuscada pela bagaceira.

O latim medieval aqua vitae, que teve descendentes em diversos idiomas, pode ter tido uma participação na formação do vocábulo, mas o sentido literal de aguardente está mais próximo do holandês vuurwater, “água de fogo”. O fato é que a ligação entre álcool e água aparece em inúmeras culturas (vodca e uísque também compartilham essa ideia), o que torna difícil dizer como começou.

Já a pinga, outra palavra cuja etimologia o texto finge iluminar, surgiu muito tempo depois, registrada pela primeira vez em 1813. A princípio tinha a acepção de “gole, trago” – por meio da ideia de algo que apenas se pinga no copo, em pequeno volume – e só depois, por extensão, virou sinônimo de cachaça.

Se a aguardente arde na garganta, e como arde, por que imaginá-la irritando feridas abertas por chicotadas? Se a pingamos no copo, por que descrevê-la pingando do teto após uma estranhíssima evaporação acidental? Simples: porque assim temos um retrato perverso do Brasil, essa terra inocente onde a aguardente foi descoberta por puro acaso.

Texto Sergio Rodrigues

http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/lendo-a-lenda/a-aguardente-a-pinga-e-a-mais-idiota-das-lendas/